A VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA SOB A ÓTICA
DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
SECONDARY VICTIMIZATION FROM THE
PERSPECTIVE OF THE RIGHTS OF THE CHILD AND ADOLESCENT
Autora: Dra. Aline Oliveira Mendes de Medeiros[1]
Resumo: O presente artigo visa analisar
o sujeito passivo do delito de estupro de vulnerável sob a ótica de sua
revitimização através do processo persecutório penal, vez que, ele é vitimizado
a primeira vez através do ato delitivo e torna a ser vitimizado no transcorrer
do desenrolar do processo, vez que, resulta muitas vezes, na inocência do
acusado, quando ele era, na verdade real, culpado. Ou ainda, aquele que por ter
sido muitas vezes vitimizado, encerra por tornar-se vitimizador, utilizando-se
do fato de ter sido alvo de um crime para atuar sobre outros indivíduos
abusando-os. Por isso, através do método indutivo ele busca outros meios de
buscar o desenrolar dos fatos, de forma a trazer o máximo de efetividade e
veracidade ao sistema judiciário, evitando erros e condenações falseadas.
Palavras-chave: vitimização; estupro;
vitimizador; vitimizado; conjunção carnal; ânimo.
Abstract: This article aims to analyze
the victim of the offense of rape of a vulnerable person from the perspective
of his revictimization through the criminal prosecution process, since he is
victimized for the first time through the criminal act and becomes victimized
again in the course of the course. of the process, since it often results in
the innocence of the accused, when he was, in fact, actually guilty. Or,
someone who has been victimized many times ends up becoming a victimizer, using
the fact of having been the target of a crime to act on other individuals,
abusing them. Therefore, through the inductive method, he seeks other means of
seeking the unfolding of facts, in order to bring maximum effectiveness and
veracity to the judicial system, avoiding errors and false convictions.
Keywords: victimization; rape;
victimizer; victimized; carnal conjunction; cheer.
1. INTRODUÇÃO:
O presente trabalho
visa abordar a temática da vitimização segundaria sofrida pela criança por meio
do estupro de vulnerável, com o intuito de alertar o legislador acerca do
impacto negativo que o sistema inquisitório tem causado na mesma, em detrimento
e desrespeito a princípios inerentes aos seres humanos, como a dignidade da
pessoa humana. O método utilizado na presente pesquisa será o indutivo. O projeto
se realizará através de pesquisas doutrinárias, explanando a opinião de autores
acerca do tema, sob o enfoque dos respectivos traumas que tal sistema causa na
criança.
Em primeiro momento
será efetuada a evolução histórico normativa sofrida pela criança e
adolescente, em seguida abordar-se-á a temática explanando sobre a questão da
violência sexual no ambiente intrafamiliar e extrafamiliar, as quais resultam
no abalo psicológico denominado síndrome do segredo e da adição. Em
continuidade será explicado os tipos de vitimização cuja criança será exposta,
e suas possíveis consequências mentais, também expressar-se-á a designação do
delito de estupro conforme sua classificação doutrinária, com vistas a um
entendimento completo acerca da temática aqui referenciada.
Finalizando com uma
ampla explicação no que concerne ao trâmite processual ao qual a criança é
submetida, tanto no instante da oitiva da testemunha quanto no decorrer do
processo, visando os danos psicológicos, por vezes, irreversíveis ao ser humano,
ao qual a criança é exposta em virtude da burocracia processual, que a submete
ao status de coisa, - jogando sua dignidade fora assim como a credibilidade no
poder judiciário -. Por fim, será explanado acerca do projeto depoimento sem
danos, o qual busca diminuir a incidência da vitimização nas vítimas
infanto-juvenis, bem como acelerar o processo, com o intuito de expor a criança
o mínimo possível aos impactos do sistema penal vigente, valorando a dignidade
da pessoa humana, com vistas ao fato de que a criança - mesmo tendo sido
exposta a um crime tão bárbaro -, possa continuar sua vida pessoal abalada o
mínimo possível, passando por isso, por consultas psicológicas quando for
necessário, para que a sua vida social seja preservada e seus direitos efetivados.
2. EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE
No que tange aos
crimes infanto-juvenis, para que haja exata compreensão no âmbito jurídico, é
necessário abordar mesmo que de forma sucinta a evolução histórica normativa
relacionada aos menores, inclusive a carência de proteção normativa dos mesmos,
desde os tempos medievais até meados do século XX, sendo assim, salienta-se o
fato de que a trajetória dos direitos normativos juvenis fora marcada pela
violência, neste prisma, Mendez[¹] e Fachinetto[²] sobressaem de que é possível
dividir esta evolução em três etapas, sendo as mesmas de caráter penal
indiferenciado, protetivo e penal juvenil, as quais serão esmiuçadas para
melhor compreensão da evolução social e normativa relacionada aos mesmos. Neste
sentido, o jurista Ubaldino Calvento[3]:
Reconhecia a
existência de três escolas no I Congresso Ibero-Americano de Juízes de Menores
realizado na Nicarágua, definindo-as como:
1ª – Doutrina da
proteção integral – partindo dos direitos das crianças, reconhecidos pela ONU,
a lei asseguraria a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor
idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, educação,
recreação, profissionalização, etc.
2ª – Doutrina do
Direito Penal do Menor – somente a partir do momento em que o menor pratique
ato de delinquência interessa ao direito.
3º Doutrina
intermédia da situação irregular – os menores são sujeitos de direito quando se
encontrarem em estado de patologia social, definida legalmente. É a doutrina
brasileira.
Partindo do Código de
Hamurábi (1.600-1.700 a.C), nas denominadas sociedades tradicionais não
havia significativa distinção entre a fase infantil e a adulta, as escolas eram
frequentadas por todas as idades. Verifica-se, neste momento
histórico-cultural, que as penas eram desumanas e a criança era coisificada,
exemplificativamente, a pena do filho adotivo que desejasse retornar a casa
paterna, era lhe extrair os olhos. Com o advento da Lei das XII Tábuas, o filho
era visto como um objeto, sendo que o pai detinha sobre o filho o poder
capital, permitindo-lhe o comércio ou a decisão sobre a vida ou morte do mesmo.
Na Grécia antiga, os filhos deficientes eram eliminados, inclusive, tanto em
Roma, quanto na Grécia, o pai detinha exclusivo poder sobre a família, sendo
lícito a ele decidir sobre castigos, prisões ou mesmo a exclusão das crianças
ou mulheres do seio familiar.
No Brasil, a
despreocupação com a criança era da mesma proporção, sendo que nas primeiras
embarcações de Portugal, vinham apenas homens e crianças, as quais eram
incumbidas de prestarem serviços durante a viagem, tal como favores de ordem
sexual, e, nos casos de tempestades, eram a primeira carga lançada ao mar. Com
as Ordenações Felipinas (1.603), passa a haver um leve humanismo relacionado ao
menor, assim classificados aqueles de até 21 anos de idade, passando, então, a
serem utilizados instrumentos tal como chicotes, paus e ferros nos castigos de
manutenção da educação dos mesmos, sendo que legitimamente, os menores de 7
anos eram inimputáveis, tendo seus atos equiparados ao dos animais, aos jovens
entre 7 e 17 anos, apenas era proibida a pena capital, e aos menores de 17 a 20
anos, havia uma diminuição de pena em relação aos adultos, conforme critérios
como o modo de execução, as circunstâncias do crime, a vítima e a malícia do
autor. No ano de 1.780, na Inglaterra, a criança, podia ser condenada ao
enforcamento em mais de 200 tipos penais. Somente no ano de 1.871, é que a
sociedade passa a importar-se com a criança, sendo fundada em Nova York, a
Sociedade para a Prevenção da Crueldade Contra as Crianças[4].
No ano de 1.889, o
Brasil passa a exercer um controle social intrafamiliar, criando o Instituto de
Proteção e Assistência a Infância do Rio de Janeiro. Com a independência, em 1.822,
o País formula novas legislações como a Constituição Federal de 1.824 e
codificando o fato de que a pena não poderia ultrapassar 17 anos de
recolhimento, e seria cumprida em casa de correção diferente das de adultos. No
final do século XIX, inicia-se no Brasil o Período Republicano, trazendo
consigo o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1.890, que diferencia-se
do código anterior inovando em seu Art. 27, onde dispunha a inimputabilidade
para os 9 anos e aos jovens entre 9 e 14 anos aplicar-se-ia a inimputabilidade
relativa, onde apenas seriam condenados, caso o magistrado entendesse que havia
discernimento da parte.
No início do século
XX, diversas normas internacionais foram sendo criadas, tais como “A Declaração de Genebra de 1.924, na qual se urge pela
necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial; a Declaração
Universal de Direitos do Homem de 1.948; o Pacto de São José da Costa Rica de 1.960
e, em especial a Declaração Universal de Direitos da Criança de 1.959, famosa
por difundir a política do ‘The Best Interessed of the Children’”.[5] Que
traz como efeito ao Brasil, a edição da Lei 4.242, de 05 de janeiro de 1.921,
que em seu Art.3°, §17 aumenta-se a inimputabilidade para os 14 anos,
independente de fatores de discernimento, sendo reafirmada pelo Art. 27, §
1 do Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1.922.
Nesse momento, em 29
de junho a 1 de julho de 1.911, ocorre em Paris, o Congresso Internacional de
Menores, e a declaração de Gênova de Direitos da Criança, vestida pela Liga das
Nações em 1.924. Impulsionado, o Brasil cria o Decreto 17.943-A,
designado Código de Menores do Brasil ou Código Mello Mattos,
onde reafirma a inimputabilidade do menor de 14 anos e ao maior de 14 anos e
menor de 18 teria direito a procedimento penal especial. Em 1.940 surge o Código
Penal, estabelecendo até os 18 anos a inimputabilidade penalmente,
elencadas em seu Art. 23.
Em consonância com
Hungria[6] e a tese de Lombroso[7], verifica-se que a infância é a principal
responsável pelo desenvolvimento psicológico do ser humano, por tanto, este
período é de fundamental importância na construção do caráter do menor, é a
este momento que se deve a formação da pessoa, e sendo assim, a declinação do
menor a criminalidade ou não se deve ao meio precário onde estes vivem, a
educação que recebem e a orientação familiar que auferem, deste modo, no
momento em que a sociedade e a família falham, cabe ao Estado garantir um
tratamento adequado ao menor, através de métodos pedagógicos.
Derivado da ineficácia
deste sistema legal surgiu em 1.951, o Estatuto Social da Infância e da
Juventude, trazendo em si, um sistema humanitário devido a influência
Internacional do período pós-guerra. Em 1.964, o Governo Militar cria a PNBEM
(Política Nacional do Bem-Estar do Menor), que culmina na criação da FUNABEM
(Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), órgão destinado ao controle social
da criminalidade e da marginalidade infantil, com objetivo substitutivo do SAM.
No ano de 1.967, a Lei Estadual 1.534, criou a FEBEM destinada ao estado de
Guanabara, cuja finalidade era prestar atendimentos aos menores em situação
irregular, prevenindo marginalidades e efetuando sua promoção ao meio social.
Por sua vez, com o
mesmo intuito protetivo, o estado do Rio de Janeiro criou a FLUBEM, que com a
fusão destes dois estados compuseram-se também as instituições, passando a
denominar-se FEEM. Imediatamente, no ano de 1.979 o novo Código de
Menores de 1.979, que adotou a doutrina da “situação irregular” e trouxe o
adolescente como elemento de tutela do Estado, dando legitimidade a intervenção
estatal para os casos de menores que estivessem em situação irregular, tal como
abandonados, expostos ou marginalizados, os quais, então eram retirados de suas
famílias e mantidos junto aos menores infratores, onde recebiam a terapia da
internação, cuja medida era privar-lhe a liberdade sem prazo determinado, que
se incumbia de legitimar uma política de controle social, vigilância e
repressão. Segundo Saraiva[8], o sistema FEBEM era constituído por 80% de
jovens inocentes, ou seja, o sistema encarcerava menores inocentes, numa
inversão da norma, pois ao invés de proteger as crianças o Estado simplesmente
as retirava do convívio social.
O Estado representava
um regime autoritário atuando de forma a violar e restringir os direitos
humanos, caracterizada pela discriminação racial e de gênero, regredindo o
menor a coisificação e a objeto de repressão, baseados em preconceitos e
estereótipos. Como meio de manutenção, este sistema era organizado de modo a controlar
e oprimir as entidades associativas e os movimentos sociais, o Estado se
incumbia de convencer a população e os próprios menores de que eles eram os
responsáveis por sua condição de irregularidade, sem considerar as circunstâncias
de desigualdades sociais e da cultura déspota econômica que se instaurou,
situação a qual o Estado se referia pejorativamente de menorismo. Desacreditada
a doutrina da situação irregular cada vez mais a doutrina da proteção integral,
apoiada pela ONU, recebia adeptos, conscientes da necessidade de uma jurisdição
que respeitasse e protegesse os direitos humanos e a dignidade da pessoa
humana.
Nesta acepção, Leite,
citado no artigo de Andre Viana Custódio orienta que em análise ao sistema do
Código de Menores de 1.979 é possível afirmar que todo o jovem de classe
humilde, era considerado em “situação irregular”, o que tornava objeto de
tutela do Estado e não sujeito de direitos, e automaticamente, tornava legitima
a ação do Estado através do Juiz de Menores, para incluí-lo no regime de
assistência adotado pelo mesmo. Em 1.984, Francisco de Assis Toledo, trouxe com
a sua doutrina a Reforma Penal de 1.984, através da Lei 7.209/84.
Este desenvolvimento histórico é seguido pela criação da Constituição Federal
de 1.988, onde em seu artigo 5 ° garante os direitos: a vida, a liberdade e a
igualdade.
E em 1.990, surge a
Lei 8.069/90, denominado Estatuto da Criança e do Adolescente, pondo fim a
teoria da situação irregular, a qual, verificava a situação do menor pelos
olhos protetivos, dando-lhes razões para seus delitos com base na situação em
que os mesmos viviam, ou seja, considerada até aqui como a fase protetiva dos
menores. Neste sentido, em suas normativas a CF/88, trouxe em seu art. 227,
caput, que é dever da sociedade, do Estado e da família o asseguramento de
direitos como a vida, a saúde, a alimentação, além da proteção biológica,
psicológica e social das crianças e adolescentes. Já o ECA – Lei 8.069/90- traz
como premissa o jovem como sujeito de direitos e obrigações, sendo então considerado
responsável pelos atos que praticar, tendo então que passar por uma
ressocialização, através de medidas protetivas contidas no estatuto.
Ainda em 1.990,
através do Decreto n° 15.950, a FEEM, passou a designar-se Fundação Recanto,
devido ao ECA ter mudado a nomenclatura de “menor” para criança e adolescente,
vindo, mais tarde, em 1.995 denominar-se FIA/RJ. “Em
1.993 e 1.996 surgem, respectivamente, a Lei nº 8.742/93 – Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS) e a Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), nas quais se fundamentam os principais instrumentos de
efetividade do ECA: Os Conselhos de Direito da Criança e do Adolescente, os
Conselhos Tutelares e os Setoriais de Políticas Públicas” [9].
Nesta lógica é perceptível
que a política social aplicada aos jovens, sucessivamente, fora da pior espécie
resultando em jovens coisificados e denegridos submetidos ao cárcere privado e
coibidos de sua liberdade existencial, o que derivou na atual legislação
protetiva do Estado, que vê a criança e o adolescente como cidadão de pleno
direito, visando uma proteção prioritária a estes jovens, provindo da C.F/88, o
Art. 227, caput, que defende o Princípio da Prioridade, e Melhor Interesse,
devido ao fato de que os mesmos estão em desenvolvimento de sua personalidade e
caráter, reconhecendo que em primazia estes jovens são vítimas de um sistema,
sem que se ceda à ideia de impunidade juvenil.
3. A VIOLÊNCIA SEXUAL NO AMBIENTE
INTRAFAMILIAR E EXTRAFAMILIAR
É perceptível que a
violência acompanha de forma intrínseca à evolução da sociedade, inclusive é
verificável que a mesma faz parte do cotidiano, fazendo-se presente desde os
tempos primórdios no contexto social, estando por tanto, implantada na
civilização, constituindo raízes na cultura, o que representa uma forte ameaça
à humanidade. Neste contexto, daremos enfoque à violência
familiar contra a criança e o adolescente, o qual, conforme o Art. 1°
do ECA, se refere as pessoas menores de 18 anos, diante disso, conforme Azevedo
e Guerra[10] a violência doméstica é assim definida:
... todo ato ou
omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra criança e/ou
adolescente que, sendo capaz de causar à vítima dor ou dano de natureza física,
sexual e/ou psicológica, implica de um lado, uma transgressão do poder/dever de
proteção do adulto. De outro lado, leva a coisificação da infância, isto é, a
uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como
sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.
Neste ponto, coloca-se em destaque a diferenciação de abuso sexual
intra e extrafamiliar, sendo que o primeiro se trata de abuso sexual
efetuado por pessoas com vínculo de parentesco, ou responsabilidade sobre o
vulnerável - o mais comum-, representando 80% dos casos, e o segundo se denota
com o abuso sexual por pessoas sem vínculo afetivo ou de parentesco com a
vítima, normalmente estando relacionado com a exploração sexual comercial. Inclusive,
existem afirmações que equiparam estes dois sentidos, segundo ABRAPIA,[11].
Este fenômeno de
violência contra a criança e o adolescente, bastante abstruso e multifacetado,
alcança todos os níveis sociais ou socioeducativos, visto que aborda diversas
formas, algumas citadas, sendo que dentre estas formas, aqui colocamos especial
relevância e gravidade, ao crime de violência sexual, que na concepção das
autoras Azevedo e Guerra[12], caracteriza-se por: “[...] todo ato ou jogo
sexual, relação heterossexual ou homossexual entre um ou mais adultos com uma
criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança
ou adolescente ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa
ou outra”.
Ou ainda, em acordo
com Guerra[13], é o envolvimento das crianças e adolescentes em atividades
sexuais, para as quais seu desenvolvimento mental é incompleto ou reduzido, de
forma que seja incapaz de discernir sobre o consentimento e o sentido de tal
atitude que violam as regras sociais e familiares, incluem-se neste rol o
incesto, que é o contato sexual entre parentes consanguíneos ou afins, a
pedofilia e os abusos sexuais violentos. Neste sentido, é verificável que
o abuso sexual infanto-juvenil intrafamiliar possui grandes
proporções de gravidade e risco social, visto que devido à durabilidade e a
habitualidade que costuma haver nesta prática delituosa, os danos sofridos pelas
vítimas são não somente físicos mas, também, psicológicos, muitas vezes
irreversíveis. Indo de encontro à Carta Magna que em seu Art. 5°, traz
garantias aos direitos fundamentais, sendo, então o delito, devido ao seu
relevante valor e aversão social, tipificado penalmente como estupro de
vulnerável, expresso através do Art. 217-A do CP.
Na questão da
tipificação legal deste delito, no Brasil a primeira legislação a prever a
presunção de violência foi o Código de 1.890, no artigo 272, presumindo
violência quando o ato sexual fosse praticado contra menor de 16 anos [14]. No
entendimento do mesmo autor, o Código de 1.940, manteve a redação anterior,
porém reduziu a faixa etária para 14 anos, no art. 224, ainda acrescentou a
hipótese em que a vítima que tiver por qualquer motivo dificuldade de oferecer
resistência, ou ainda for alienada ou débil mental também se encaixe nesta
modalidade delitiva.
Com o advento da Lei
12.015/2009, revoga-se todo o texto anterior, definindo este crime como
“estupro de vulnerável”, art. 217-A do CP. Umas das principais preocupações do
legislador com o advento desta lei foi à proteção dos menores de 18 anos,
contra os crimes sexuais[15]:
... e a proliferação
da prostituição infantil e de diversas outras formas de exploração sexual. A
repressão à exploração sexual do menor tem sido objeto de diversos tradados e
convenções internacionais, tanto em razão da relevância do bem jurídico, como
também em face da dimensão internacional que vem assumindo o tráfico de menores
com fins sexuais.
Nesta lógica,
verifica-se o confronto deste crime com os direitos humanos universais, pois
nota-se que este delito ultrapassa qualquer limite ou regra, seja ela social,
cultural, legal ou familiar, ferindo gravemente a moral e os bons costumes de
forma perversa, pois sobrepõe-se aos princípios orientadores familiar, de forma
condenável e degradante. As consequências deste crime são diversas dependendo
de cada vulnerável, porém podem ocorrer, de acordo com Mari Lucrécia Zavaschi e
Marceline Gabel[16],
... manifestações
negativas tal como distúrbio de personalidade, automutilação, tentativa de
suicídio, depressão, isolamento, pesadelos, medos, angústias, introdução de
objetos nos órgãos sexuais, masturbação excessiva, “conhecimentos de
sexualidade inadaptada para sua idade, comportamento de sedução”, dentre outros.
Pode incidir que no
decorrer da violência aconteçam ferimentos na criança, tornando identificável o
crime, porém, nem sempre isso é possível, tornando-se a palavra da criança de
fundamental valia.
Ainda citado pelo
referido artigo, Carla Faiman[17], afirma que a preferência dos agressores por
crianças se deve a fragilidade na obtenção de resistência por parte das vítimas
e da vulnerabilidade em serem iludidas e intimidadas, em conjunto com fatores
como o respeito culturalmente inserido em relação a autoridade do adulto, fato
este que, torna a relação mais duradoura por falta de capacidade de reação dos
menores. Em semelhança as circunstâncias das crianças abusadas, a autora
destaca a família como principal ponto de partida, visto que a falta de atenção
dispersada na criança, a falta de carinho, de amor, tornam-na carente e
vulnerável as investidas. Em conformidade [18], o geneticista Renato Zamora
Flores, em entrevista para o artigo “Inocência Violada” relata:
…a frequência das
relações incestuosas entre a maioria das espécies de aves e mamíferos e da
genética do comportamento é de apenas 1% a 2% e a estimativa para o homem é de
20%. Em algumas famílias de bichos, as fêmeas deixam de ovular quando só há
parentes disponíveis para a procriação, movidas pelo instinto de que sexo entre
iguais enfraquece a espécie e reduz as chances de sobrevivência. O incesto é
essencialmente humano e isso é o que parece assustar as pessoas.
4. A SÍNDROME DO SEGREDO E A SÍNDROME DA ADIÇÃO
Tal situação quando
ocorre no ambiente familiar, com frequência resulta no fenômeno cognominado síndrome
do segredo, que consiste na ocultação do crime por parte da vítima e dos
familiares, motivados pela preservação do ambiente familiar, pela falta de
evidencias, falta de credibilidade, também, em razão de ameaças, culpa, negação
e medo de punição pelo ato que praticado. Percebe-se que quando o abusador
convive com a pessoa diariamente, a criança encontra maior dificuldade em
relatar os fatos, porque facilita ao autor dos casos a manutenção das agressões
e as reiteradas ameaças, isso combinado com a questão de que normalmente a
pessoa é alguém de confiança da vítima, como o pai, por exemplo, pelo qual a
criança sente afeto, e medo de destruir o lar e causar a infelicidade da
família.
Destaca-se nesta
questão que o fato de o autor tornar a relação duradoura, faz com que a criança
seja desacreditada e sinta um temor e culpa psicológico mais evidenciado,
culminando na negação dos fatos e no silêncio da vítima. Também é notável
nestas questões, que em grande parte dos acontecimentos, a criança deseja
apenas que os maus tratos cessem, sacrificando-se em função da família. Neste
instante, coloca Patrícia Rangel[19], que a maior dificuldade que a vítima
encontra em denunciar os fatos, é quando se trata de menores do sexo masculino
que são abusados por adultos do mesmo sexo que o seu, também agrega a isso o
pouco índice de denunciação de episódios deste sentido.
Por sua vez, a síndrome
da adição se processa no abusador, de forma psicológica, onde o mesmo
tem consciência do crime que está cometendo, porém perde o controle de suas
ações, sendo conduzido pelo impulso reiterado a repetir a conduta, para sua
satisfação como em uma espécie de vício.
Aspectos de adição
também pode ocorrer nas vítimas, quando as mesmas passam a fazer uso de drogas
como o álcool ou o cigarro, em uma atitude de maturidade antecipada. Este ciclo
de estupro acarreta em consequências ainda mais desastrosas quando o autor é o
pai da vítima, pois a mesma cresce sem o devido discernimento da relação de
incesto, o que facilita que a mesma venha a cometer o crime no futuro. Faz-se
necessário um acompanhamento psicológico tanto para autor quanto para a vítima,
para solucionar por completo o problema.
5. VITIMIZAÇÃO PRIMÁRIA,
SECUNDÁRIA E TERCIARIA
A
Vitimização, são as consequências contrárias físicas ou psicológicas que um
fato negativo causou. Ela pode ser dividida em três:
a) vitimização primária, o primeiro
passo, pois, consiste na própria experiência do abuso, ou seja, é a
negatividade causada pelo crime, este processo se dá no instante em que o abusador
coage a vítima a praticar o ato sexual, que sem a coerção física ou moral, ela
não teria praticado.
b) Logo, a vitimização secundária
ou revitimização, se processa em um segundo momento através do
pós-crime, normalmente tem relação com a rememorização do crime,
a exposição pública, e ainda com a violência institucional, através do instante
da inquirição da vítima no processo penal. A esse respeito dispõe[20]:
As vítimas da
criminalidade e as vítimas de abuso de poder e, frequentemente, também as respectivas
famílias, testemunhas e outras pessoas que acorrem em seu auxílio sofrem
injustamente perdas, danos ou prejuízos e que podem, além disso, ser submetidas
a provações suplementares quando colaboram na perseguição dos delinquentes.
c) Em contrapartida, a vitimização
terciária, surge do próprio comportamento da vítima, pois esta absorve a vitimização
sofrida anteriormente e passa a relacionar-se com o meio social de forma
vingativa, sobre o que, preleciona, Beristain[21]:
Quando alguém, por
exemplo, consciente de sua vitimização primária ou secundária, avoca um
resultado, em certo sentido, paradoxalmente bem-sucedido (fama nos meios de
comunicação, aplauso de grupos extremistas, etc.), deduz que lhe convém aceitar
essa nova imagem de si mesmo (a), e decide, por meio desse papel, vingar-se das
injustiças sofridas e de seus vitimadores (legais, às vezes).
Neste enfoque, de
vitimizada a vítima passa a vitimizar, em outras palavras utiliza-se das chagas
abertas em seu corpo e psicológico para abrir, da mesma forma que em si ou até
pior, por meios, muitas vezes estratégicos, em outras vítimas as mesmas chagas
pelas quais fora ferida, confundindo-se dentro do tipo delitivo.
6. O DELITO DE
ESTUPRO E SUA CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA
O sistema normativo vigente, fora legalizado em 1.940. Ocorre que, a visão da
criança e do adolescente evolui historicamente, tornando este aparelho
desatualizado e precário, com normas de procedimento inadequadas a realidade
vigente, especialmente para a resolução de problemas como o estupro de
vulnerável, que devido a pressão social sofrida, passa a ser denunciado a
poucas décadas, carecendo por tanto de profissionais habilitados para lidar com
a situação e de legalização compatível com a realidade social e cultural vivenciada.
Adepto a esta
concepção, por iniciativa da CPMI da Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes, determina-se o Projeto de Lei do Senado n° 253/04, que resulta na
promulgação da Lei 12.015/09, que acarreta modificações no Título IV do Código
Penal, tal como a modificação da nomenclatura para “Dos Crimes Contra a
Dignidade Social” e acarreta alterações ao sistema normativo penal, passando a
evidenciar o delito como um meio de ferir o seio social e não apenas a vítima e
aos envolvidos, destacando-se a introdução de uma nova espécie normativa, o
Art. 217-A do CP, caracterizado como o estupro de vulnerável, chegando ao ano
de 2009 instante em que o inclui ao rol dos crimes hediondos.
O bem jurídico
tutelado aqui é a “dignidade sexual do menor de quatorze anos, ou do enfermo ou
deficiente mental que tenha dificuldade em discernir a prática do ato sexual”
[22]. Nesse sentido, coloca o magistério Muñoz Conde[23], mencionado por
Bittencourt “mais que a liberdade do menor ou incapaz, que obviamente não existe
nesses casos, pretende-se, na hipótese do menor, proteger sua liberdade futura,
ou melhor dito, a normal evolução e desenvolvimento de sua personalidade, para
que quando seja adulto decida livremente seu comportamento sexual”. Nesta mesma
linha de raciocínio, argumenta, Luciane Potter Bitencourt[24]:
Nos crimes sexuais
que envolvem crianças e adolescentes, mais do que a liberdade sexual, são
violadas também a integridade física, psíquica e a dignidade da pessoa humana,
pois a sexualidade em crianças e adolescentes, jovens cujas personalidades
ainda se encontram em desenvolvimento, não se pode falar em liberdade sexual.
Ou seja, considera-se
o fato de que, até os 14 anos a criança ou adolescente ou adulto que se encaixe
nas condições descritas no tipo penal, não seja apto a decidir sua liberdade
sexual, posto que, não possui maturidade psicológica e até mesmo, física, para
decidir por conta própria manter ou não relações de cunho sexual.
Quanto à
classificação desta conduta podemos coloca-la como:
Trata-se de crime
comum (não exige qualquer qualidade ou condição especial do sujeito ativo; o
fato de somente alguém vulnerável poder ser sujeito passivo não o qualifica
como crime próprio); material (crime que causa transformação no mundo exterior,
isto é, deixa vestígios); doloso (não há previsão de modalidade culposa); de
forma livre (pode ser praticado por qualquer forma ou meio eleito pelo sujeito
ativo); comissivo (o verbo nuclear implica a pratica de uma ação); instantâneo
(a consumação não se alonga no tempo, configurando-se em momento determinado); uni
subjetivo (pode ser cometido por uma única pessoa); plurissubsistente (a
conduta pode ser desdobrada em vários atos, dependendo do caso)[25].
Pode se afirmar, conforme
Greco[26], que o crime não admite modalidade culposa, admitindo neste sentido o
erro de tipo com relação a idade da vítima- a pessoa tem relação de cunho
sexual com a vítima acreditando que ela tenha idade diferente da que ela
realmente possui-, o que pode causar em fato atípico ou tipifica-lo no crime de
estupro nos casos em que haja violência ou grave ameaça, Art. 213 do CP. Neste
fato típico necessita-se do elemento subjetivo especial do injusto, ou seja,
ele insere-se na tipologia que Welzel[27] distingue como crimes de
tendência (voluptuosa), ou tendência intensificada, onde a
ação encontra-se envolvida por determinado ânimo, (no caso o ânimo de possuir
sexualmente a vítima) ou seja uma finalidade de ação, cuja ausência desta
vontade impossibilita a sua tipicidade.
Verifica-se na
causídica que o agente delitivo detinha a intenção de se favorecer sexualmente
da vítima, descartando a sua vontade de cooperar com o ato ou não, (vez que,
nesta modalidade delitiva a vontade da vítima menor de 14 anos, ou possuidora
de enfermidade ou deficiência mental não conta como meio de assentimento – a
vontade destas pessoas, aqui é descartada, o crime subsiste mesmo com sua
anuência -), porém, pratica o ato acreditando que a vítima possui outra idade,
este crime inicia sua tipificação quando há a vontade no agente de praticar o
ato, sem esta vontade –ânimo-, não há crime.
7. TRÂMITE PROCESSUAL PENAL:
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
No atual sistema processual o trabalho baseia-se na busca da verdade real, ou
seja, na averiguação do crime e na repreensão do agressor, deixando em segundo
plano a vítima, despreocupado com a sua revitimização e
traumas que possam se instalar em seu interior.
Seria interessante
que, o processo de comunicação do crime de estupro de vulnerável procedesse ao
seguinte trâmite jurídico-processual: primeiramente far-se-ia a denúncia ao
Conselho Tutelar, em consonância com o Art. 13 do Eca, que diz: “Os casos de
suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão
obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem
prejuízo de outras providências legais” e Art. 98 do referido diploma legal, que
expressa: “Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são
aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou
violados: I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta,
omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - em razão de sua conduta”.
Pois segundo o ECA,
no Art. 136, depois de averiguada a denúncia do crime, o próprio órgão do
Conselho Tutela se encarrega de encaminhar ao Ministério Público a notícia que
constitua infração penal contra a criança ou adolescente. Concomitantemente,
deverá ser feita a denúncia a autoridade policial, para que se possa instaurar
a investigação, este é o momento em que o vulnerável deverá ser ouvido, para
que possa apresentar seu relatório criminológico.
Neste instante, a vítima será encaminhada ao Departamento Médico Legal, para
proceder com os exames periciais, cujos dados coletados são encaminhados ao
Ministério Público, que ouvirá o depoimento da criança e a encaminhara para um
perito psicólogo. Em concordância com o ECA[28]:
Sempre que estiver
presente notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal sobre
os direitos da criança ou do adolescente (Art. 136, inciso IV, do ECA), bem
como, se mostrar necessário o ajuizamento de ações de suspenção ou destituição
do poder familiar (Art. 136, inciso XI, do ECA), independente das medidas de
proteção ou aplicáveis aos pais (Art.101 e 129 do ECA), o Conselho Tutelar
encaminhará ou representará ao Promotor de Justiça. De posse das informações, o
Ministério Público avaliará a necessidade do ajuizamento da ação de suspensão
ou destituição do poder familiar, assim como a adoção das medidas legais
cabíveis. Ao propor a ação, no âmbito cível ou mesmo criminal, o Ministério
Público aciona o sistema de Justiça, dando início a uma nova fase na vida da
criança ou do adolescente e de seus pais.
Em procedência a
investigação, na possibilidade de haver indícios de materialidade e autoria, o
Ministério Público, oferecerá denúncia contra os autores da violência.
Procedendo então, até o sistema de justiça criminal, onde novamente a vítima
deverá depor[29].
Neste modo de ver o
sistema persecutório, constata-se a falta de profissionais competentes para
lidar com este tipo de situação, visto que a criança se depara com uma sala
rodeada por pessoas estranhas, para as quais ela precisa falar sobre os
acontecimentos e se expor, além de que ao se referir a criança, os profissionais
não possuem habilidade o suficiente para fazê-la relatar os acontecimentos,
pois, o profissional precisa ser claro, sem ser grosseiro, e evitar utilizar um
vocabulário que esteja fora do entendimento do vulnerável, e precisa também, ter
sensibilidade para que não a faça se sentir degradada frente a situação que por
si mesma, já é constrangedora.
8. A PROBLEMÁTICA NA OITIVA DO
SUJEITO PASSIVO
A partir de 1990, o
sistema institucional tramita para um novo aparelho de proteção integral as
crianças e adolescentes, com foco na ordem, princípios e modelos internacionais,
em respeito à Lei Magna. Porém, a falta de conhecimento aprofundado dessas
leis, o despreparo dos operadores do direito, a ausência de políticas públicas
e a desvalorização social destes direitos legislados precisam ser afrontados e
afastados da prática.
A Magna Carta
apresenta a posse de um ordenamento jurídico expressamente eficaz, no entanto,
carece de proposição prática destas leis. É verificável a desproporção
sistemática no âmbito penal em relação aos sujeitos passivos vulneráveis, visto
que aos sujeitos ativos, reserva-se o recinto de uma delegacia especializada a
atuar de maneira a dirimir e solucionar eventuais conflitos, porém ao se tratar
de vítimas vulneráveis, os próprios, possuem tratamento igualitário a vítimas
de crimes de qualquer outra natureza ou idade, o que denota uma desigualdade
metódica, verificável no art. 201 do CPP, que trata da tomada de depoimento da
vítima e do art. 202 do CPP e seguintes, que tratam das testemunhas.
Sendo assim, os crimes
cometidos contra infanto-juvenis são julgados nas varas comuns, onde os mesmos
aguardam em salas junto aos demais integrantes do processo, inclui-se neste
rol, familiares e o próprio sujeito ativo do crime, (o estuprador), o que
facilita o suborno da vítima ou a coação, prejudicando seu depoimento, e com
isso a verificação da verdade real, ao contrário dos atos infracionais que se
cometidos pelos jovens, são julgados nas varas de infância e adolescência,
demonstrando uma desarmonia institucional.
Ademais, faz-se
necessário uma compreensão psicológica acerca do assunto para que se obtenha um
resultado positivo, visto que o entrevistador precisa estar preparado para a
situação, sem se envolver de forma piedosa, ou ser formal a ponto de fazer a
inquisição por simples burocracia, consciente de que o sujeito passivo é o
possuidor do esclarecimento dos fatos, cabendo ao investigador se apropriar
destas informações, etapa esta, crucial para o desenrolar do processo. Em
entendimento, Maria Fay de Azambuja[30], dispõe:
A oitiva da
criança visa essencialmente produção da prova da autoria e materialidade, em
face dos escassos elementos que costumam instruir o processo, com o fim de
obter a condenação ou absolvição do abusador, recaindo na criança uma responsabilidade
para a qual não se encontra preparada, devido a sua peculiar condição de pessoa
em desenvolvimento ou, ainda, nos termos da Convenção, em razão de sua
imaturidade física, cognitiva e psicossocial.
Para Osvaldo
Marcón[31], “não se trata de um bem-estar ou mal-estar momentâneo. Pelo
contrário, são efeitos nocivos da ordem da saúde e do sistema de representações
sociais que regulam a conduta cotidiana da criança ou do adolescente.”
Destaca-se neste momento, a respeito da Decisão - Quadro do Conselho da União
Europeia de 15.03.2001[32], que constitui no art. 8, n°4, diretrizes aos
Estado-Membro de maneira a dirimir os efeitos de seus depoimentos em audiências
públicas, prestando proteção as vítimas infanto-juvenis, inclui também o art.
14, n° 1, sobre a capacitação das pessoas que terão envolvimento no processo ou
contato com a vítima. E por fim no art. 15, n°1, destacou a necessidade de dar
condições necessárias a diminuir as pressões sobre a vítima e acautelar a
vitimização secundaria.
Em consideração
Danilo Marcondes de Souza Filho[33], destaca que deve haver uma análise no que
concerne as expressões a serem utilizadas, considerando “como, por quê e por
quem” na escolha da formação da frase em concordância com Austin[34], que
“propõe a análise da linguagem como ação, a análise é dirigida ao ato de fala e
as consequências advindas dessa fala”, para que ao usar-se a fala de forma
consciente ter-se-á uma percepção mais aguçada dos fenômenos.
Para Jorge
Trindade[35], a confiabilidade dos relatos depende dos procedimentos adotados
pelo coletor, considerando que múltiplos detalhes podem influenciar nos
relatos, como a presença do abusador, a formalidade do ambiente, a frieza dos
procedimentos, fazendo com que a memória e expressões possam ser prejudicadas
de indivíduo para indivíduo. Sendo assim, como proceder de modo a dirimir estes
conflitos? Que solução usar para obtenção do melhor resultado com menor impacto
possível na vítima? Como tornar a justiça mais humana, sendo ela tão rígida e
formal?
9. PROJETO DEPOIMENTO SEM DANO OU DEPOIMENTO ESPECIAL COMO
FORMA DE DIZIMAR A VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA
O projeto Depoimento Sem Dano foi idealizado pelo juiz José Antonio Daltoé
Cezar, tem como função, dissipar os traumas psíquicos enfrentados pela vítima
infanto-juvenil e aproximar o judiciário da verdade dos fatos, tornando
possível a efetivação da justiça. Em entendimento, assevera José Antonio
Daltoé Cezar[36]:
...é um direito da
criança ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem,
e não mera prerrogativa da autoridade judiciária (...), se propõe atualizar o
ordenamento jurídico nacional, que em momento algum, até esta data, cuidou de
contextualizar as determinações contidas no artigo 227 da Constituição Federal.
A
ideia do projeto surgiu da necessidade de um sistema processual especial para a
criança, diferenciando-as do aparelho dos adultos conforme idade e grau de
discernimento, tendo compreensão com a situação vivenciada, conforme Carla
Carvalho Leite[37], a oitiva da vítima deve ser feita de forma adequada
evitando a produção do dano secundário, que por vezes pode ser mais prejudicial
psicologicamente a criança que o dano primário, causado pelo crime.
Pioneiro na ideia, o
Juiz lotado na Comarca de Porto Alegre, sob orientação dos psicanalistas Mario
Fleig e Conceição Beltrão, inspirado no trabalho de Veleda Dobke, formou um
grupo de interessados pela área e aplicou em 06 de abril de 2003, na 2º Vara da
Infância e da Juventude do Foro Central de Porto Alegre o projeto-piloto
Depoimento Sem Dano, já no ano seguinte “o projeto assumiu caráter
institucional patrocinado pelo Tribunal de Justiça do Rio grande do Sul. A
partir de 2006, o Governo Federal, por meio da Secretaria Especial de Direitos
Humanos, apoiou o projeto, passando a disseminar a prática para outros Estados
brasileiros” [38].
Em síntese, Cezar[39] explica da seguinte forma:
Trata-se de, na
ocasião dos depoimentos das crianças e dos adolescentes vítimas de abuso
sexual, retirá-las do ambiente formal da sala de audiências e transferi-las
para sala especialmente projetada para tal fim, devendo esta estar devidamente
ligada, por vídeo e áudio, ao local onde se encontram o Magistrado, Promotor de
Justiça, Advogado, réu e serventuários da Justiça, os quais também podem
interagir durante o depoimento. (CEZAR, 2007, p. 51).
O projeto propõe uma
nova forma de inquirir as vítimas, sem provocar alterações na justiça
brasileira conforme agrega Carla Carvalho Leite[40]:
Iniciada a audiência,
o depoimento transcorre de acordo com a normativa processual, ou seja,
primeiramente o Juiz faz as perguntas e, em seguida, as partes formulam as
perguntas, as quais, uma vez deferidas pelo Juiz, são por este formuladas ao
depoente. Neste caso, o juiz o faz indiretamente, já que dirige as perguntas ao
profissional que está com um ponto de escuta e este, por sua vez, repassa à
vítima, adequando-a ao vocabulário desta, o que [...] se torna possível pela
capacitação técnica.
Em concordância,
preleciona Jorge Trindade[41] que, na produção de prova é perfeitamente viável
o uso de psicólogos na inquisição, pois através de seus conhecimentos
específicos de abordagem, torna-se possível um conhecimento abrangente a
respeito da violência e sua repercussão na criança, bem como, contribuir no
exame de credibilidade do depoimento, e ainda na possibilidade de avaliar o
abusador a analisar as probabilidades do mesmo reincidir ou recuperar-se da
síndrome.
Em sua acepção, Ana
Beatriz Lumatti[42], aduz que o depoimento será realizado uma única vez durante
o processo, por pessoa designada pelo magistrado e coletado em sala especial,
diversa da habitual, pois de acordo com a mesma, as tradicionais salas de
audiência foram produzidas com o fim de denotar a supremacia estatal sob a
vítima, de modo que este meio não tem capacidade de integração com a vítima
infantil, causando transtornos psicológicos ainda maiores nas crianças, fazendo
com que se calem, ou chorem ou ainda não apresentem um depoimento lógico e
coerente, circunstâncias que podem causar a absolvição do agressor, ou seja,
-impunidade.
Em entrosamento Luciane Poterr Bitencourt[43] preleciona:
O Projeto-piloto
Depoimento Sem Dano consiste em acolher o depoimento da vítima de abuso sexual
em uma sala especialmente montada com equipamento de áudio e vídeo, interligado
a sala de audiências, retirando, assim, o caráter solene do evento. A vítima é
recebida, antes da audiência, no corredor do andar do 2° JIJ, por um dos
profissionais da equipe interdisciplinar e encaminhada prontamente a sala
especial, não se encontrando com o acusado. Durante o depoimento ela não ouve e
nem vê nenhuma das pessoas que estão na sala de audiências. Apenas um
profissional toma o depoimento da vítima, ou seja, um psicólogo ou assistente
social, integrantes da equipe interdisciplinar dos Juizados da Infância e da
Juventude. O juiz, o promotor de justiça, o defensor e o acusado acompanham o
depoimento pelo sistema de TV e têm possibilidade de enviar perguntas ao
técnico, que, como interlocutor, as repassa a criança ou adolescente, em
linguagem adequada”. “...a entrevista é gravada em CD que, após, é anexado aos
autos.
Objetiva-se com este trâmite “adequar os princípios do processo penal, em
especial o contraditório e a ampla defesa, com os princípios constitucionais da
dignidade humana e prioridade absoluta ao atendimento dos direitos das crianças
e dos adolescentes”, conforme CEZAR[44]. Tal projeto, resultou em propostas de
regularização da sistemática, tal como o Projeto de Lei 8.045/10, de Jose
Sarney, que está em tramitação no Senado, tal modelo, propõe alteração no
Código de Processo Penal, afim de implantar o Depoimento Sem Dano, como forma
de adequação expressa a ordem jurisdicional.
10. PARTICIPAÇÃO DE PSICÓLOGOS E ASSISTENTES SOCIAIS NO
PROJETO DE INQUISIÇÃO DO SUJEITO PASSIVO
Para Maria Palma
Wolff[45], a inquisição dos infanto-juvenis efetuada pelo serviço de psicólogos
e assistentes sociais, se desenvolve de três formas:
Acolhimento: esta é a
primeira etapa, antecedente ao depoimento, momento em que o psicólogo ou
assistente social vai reconhecer a personalidade da vítima. Também neste
momento a vítima terá ciência do procedimento da audiência, e escolhera se quer
ou não estar na presença do réu, neste instante será avaliado ainda a
capacidade cognitiva e afetiva da criança, e neste ponto, também será observado
o nível cultural da criança e com isso seu linguajar (a forma como se refere
aos órgãos sexuais, por exemplo), para que o agente saiba a forma como se referir
ao questiona-la.
Em seguida vem a fase
do depoimento propriamente dito, é o período em que a vítima é transferida para
a sala especial, onde será realizada a inquirição pelo profissional designado,
neste instante não será realizado o estudo psicológico ou social, visto que já
foi feito na etapa anterior, mas realizar-se á, a fase depoente da vítima. Em
afirmação elucida Veleda Dobke[46], que no caso do operador de direito não ter
conhecimento sobre a dinâmica do delito sexual, ou dificuldade de interpretação
da linguagem infantil, ou não ter formação inquisitiva para o delito
propriamente dito, poder-se-á, nomear um intérprete capaz de ouvir de forma válida
a vítima, sem causar danos secundários. Assim, esclarece José Antonio Daltoé
Cezar[47]:
...do depoimento, que
dura, via de regra, entre vinte e trinta minutos de gravação não interrompida,
a primeira observação a ser realizada é que se trata de uma audiência de
instrução que é realizada na forma processual vigente, penal ou civil, pelo
sistema presidencial – cumpre ao Juiz, exclusivamente, dar início e ordenar os
atos, conforme a lei, e decidir sobre as questões que forem suscitadas durante
o seu transcorrer – cabendo ao técnico atuar como facilitador do depoimento da
criança/adolescente.
Também em relação às
perguntas repassadas pelo intérprete, o criador do projeto salienta a
importância deste ponto para evitar perguntas impertinentes que costumam
ocorrer em audiências convencionais, como no caso do relato evidenciado por ele
no magistério, “Eu me lembro de um caso em que uma menina de 12 anos tinha sido
estuprada por um cara de uns vinte anos. Ela chorava, chorava, na audiência, e
o advogado dele fez uma pergunta horrível: queria saber se ela gozou. Eu indeferi,
só que ela ouviu; o estrago já tinha sido feito. Não bastou ela ser estuprada,
foi agredida dentro da sala de audiência”.
Então, a criança
estando em sala separada, participará da audiência através de meio eletrônico,
respondendo a perguntas enunciadas pelo intérprete, o que a protege de debates
ou perguntas impertinentes que possam deturpar sua capacidade mental.
Toda a tramitação da audiência é
gravada num computador e posteriormente repassada para um CD que será anexado
aos autos para servir como prova. A última fase de denomina retorno, esta fase
se dá com o término da audiência, onde o psicólogo irá repassar para os
responsáveis pelo menor os aspectos relevantes da inquisição, além disso é
analisado as reações psicológicas da vítima, e verificar-se-á a necessidade de
encaminhamento avaliativo de rede de saúde, neste enfoque, manifesta José
Antonio Daltoé Cezar[48]:
Diferentemente do que
ocorre quando uma audiência é realizada pelo sistema estritamente previsto nas
normas processuais, em que a vítima de abuso sexual ou outro tipo de violência
, após o encerramento da inquirição, é dispensada e não mantém mais qualquer
contato com o sistema de justiça, propõe o projeto Depoimento Sem Dano que o
objeto da escuta da criança/adolescente não se encerre imediatamente, como
forma de novamente valorizá-la como sujeito de direitos e de afastar a ideia
[sic] de que aquele momento foi apenas um meio – a criança/adolescente o objeto
– para que o Estado conseguisse atingir o desiderato de um processo judicial.
Assim tem-se um
sistema normativo eficaz, porém, com vistas a proteger a dignidade do ser
humano de forma que sua vida em sociedade não seja sacrificada, mesmo após a sua
incidência em um crime traumático e violento como o estupro.
11. CONCLUSÕES FINAIS:
É perceptível
que o círculo jurídico composto pelos operadores de direito, estão atentos as
mudanças sociais e culturais da sociedade, sendo por tanto, inaceitável um
sistema processual arcaico e inibitório, onde a busca da verdade real esteja
acima de qualquer espécie, inclusive acima da dignidade humana. Com base nos
Direitos Universais e em atenção as diferenças, estão sendo promulgados
projetos que visam um direito igualitário, que valoriza o ser como um indivíduo
social, respeitando por tanto, as diferenças próprias do ser humano e de sua
faixa etária.
Indiferente de sua nomenclatura, “Depoimento Sem Dano” ou “Depoimento
Especial”, o que qualifica cada um é a sua preocupação com a efetivação da
justiça, com base na minimização dos traumas enfrentados pela criança. O que se
propõe com o novo método inquisitório é a humanização da justiça, baseada na
Declaração dos Direitos Humanos, Na Constituição Federal e no ECA. O
presente projeto coloca em questão a formalidade da justiça, frente a vítima do
estupro, que por si só, já produz estragos suficientes para o vulnerável, que
como visto, desde os primórdios fora tratado como objeto, como menoridade –“oh,
de menor”-, perante o sistema jurídico.
Em consonância com o avanço da humanidade e a evolução cultural desenvolvida
nos últimos tempos, há necessidade de que a lei ande em harmonia social, sendo
por tanto inaceitável um preceito antiquado, como o tratamento desempenhado em
um assunto de tamanha sensibilidade e necessidade de intervenção jurídica, pois
essa atitude judicial gera insegurança social e por tanto, a desarmonia da
norma, resultando na descrença do cidadão com a efetivação da justiça.
Afinal, percebe-se que além de leis expressas, há necessidade de efetivação da
norma, e para este fim, a inquisição de forma adequada é indispensável, somente
com uma investigação de maneira igualitária com a vítima é que será possível o
conhecimento dos fatos. Diante disto, a qualificação dos profissionais em
contato com o sujeito passivo é imperativa. É verificável com base nos projetos
de lei instaurados, que o legislador está alerta com respeito a harmonia
processual e a evolução igualitária da humanidade, procurando suprimir as
lacunas e efetivar os direitos inerentes ao ser humano, de forma igualitária aos
iguais, e abordando de caráter desigual os desiguais, passando a ver o
vulnerável como sujeito de direito e carente de proteção judicial.
O método do depoimento sem danos como verificável nas comarcas em que os
utilizam é perfeitamente eficaz e condizente com o ordenamento jurídico,
auxilia na proteção do indivíduo vulnerável, dando-lhe assistência e segurança
na efetividade legal. Permite o procedimento do devido processo legal, além de
promover um amparo a vítima, e através de profissionais habilitados, garantir
que a justiça se efetive. Ainda, determina a efetivação da norma com a
realidade imposta –vigente- na sociedade. Busca como resultado a proximidade do
ordenamento jurídico com o cidadão de direito, trazendo um conforto e
sentimento de segurança, o que resulta em delitos efetivamente resolvidos.
BIBLIOGRAFIAS:
Obs: Art. 217-A do CP/40. Art. 217-A. Ter conjunção
carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena -
reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1 o Incorre na mesma pena quem
pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato,
ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela
Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2 o (VETADO) (Incluído pela Lei
nº 12.015, de 2009)
§ 3 o Se da conduta resulta lesão
corporal de natureza grave: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena -
reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 4 o Se da conduta resulta
morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena -
reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 5º As penas previstas no caput
e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento
da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao
crime. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018).
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[1] Advogada militante
desde 2016, pós-graduada em Direito do Trabalho e Previdenciário, Pesquisadora
da área jurídica. Autora do Blog Direito em Estudo, e do Livro A Promoção dos
Direitos Humanos Fundamentais Através da Polícia Militar.