sábado, 8 de abril de 2017

IGUALDADE E DISCRIMINAÇÃO À LUZ DAS AÇÕES AFIRMATIVAS RELACIONADAS COM AS COTAS RACIAIS

IGUALDADE E DISCRIMINAÇÃO À LUZ DAS AÇÕES AFIRMATIVAS RELACIONADAS ÀS COTAS RACIAIS

 

EQUALITY AND DISCRIMINATION IN LIGHT OF AFFIRMATIVE ACTIONS RELATED TO RACIAL QUOTAS

 

Autora: Dra. Aline Oliveira Mendes de Medeiros[1]

 

Resumo: A presente pesquisa pretende analisar as ações discriminatórias positivas relacionadas às cotas raciais enfatizando estas ações como ferramenta para promover a inclusão social e a oportunidade de uma vida digna aos grupos minoritários, visando à transformação dos conflitos e resgatando o espírito humanitário. No intuito de encontrar uma resposta a esta temática, formulou-se o seguinte problema de pesquisa: é possível que o sistema de cotas raciais proporcione ferramentas suficientes para promover a inclusão social de grupos marginalizados socialmente? Visando responder ao problema proposto, o trabalho tem por objetivo geral analisar se o argumento contrário ao sistema de cotas raciais que se baseia na alegação do vício de inconstitucionalidade, sob a justificativa de afronta ao princípio da igualdade, tem procedência ou não. E, por objetivos específicos: a) estudar o respaldo legal que esta forma de discriminação (positiva) possui desde o plano internacional até a sua irradiação nacional, de maneira a extrair o sentimento que o legislador possuía ao elaborar o arcabouço protetivo relacionado à matéria; b) analisar a contribuição que o sistema de cotas proporciona aos residentes em solo pátrio; c) estudar o sistema de cotas no viés conferido pelo sistema jurídico, pelo entendimento doutrinário e pelas decisões magistrais. O aprofundamento teórico do estudo pauta-se em pesquisas bibliográficas, consubstanciada na leitura de diversas obras, de analises de lei, apoiando-se em um método dedutivo. Existem diversas ações discriminativas positivas vigentes no Brasil, entretanto, o sistema de cotas raciais ressalta o resgate da sensibilidade, visando quebrar as algemas escravagistas das mentes humanas, reconhecendo as diferenças e promovendo a alteridade.

Palavras-chave: Igualdade de fato. Discriminação positiva. Ações afirmativas. Discriminação social. Cotas raciais.

 

Abstract: This research intends to analyze the positive discriminatory actions related to racial quotas, emphasizing these actions as a tool to promote social inclusion and the opportunity for a dignified life for minority groups, aiming at transforming conflicts and rescuing the humanitarian spirit. In order to find an answer to this theme, the following research problem was formulated: is it possible that the racial quotas system provides sufficient tools to promote the social inclusion of socially marginalized groups? Aiming to answer the proposed problem, the work aims to analyze whether the argument against the racial quotas system, which is based on the allegation of unconstitutionality defect, under the justification of an affront to the principle of equality, is valid or not. And, for specific purposes: a) to study the legal support that this form of (positive) discrimination has from the international level to its national impact, in order to extract the feeling that the legislator had when elaborating the protective framework related to the matter; b) analyze the contribution that the quota system provides to residents on homeland; c) study the quota system in the bias conferred by the legal system, the doctrinal understanding and the magistral decisions. The theoretical deepening of the study is based on bibliographical research, based on the reading of several works, of law analysis, based on a deductive method. There are several positive discriminative actions in force in Brazil, however, the racial quotas system emphasizes the rescue of sensitivity, aiming to break the slavery shackles of human minds, recognizing differences and promoting otherness.

 

Keywords: De facto equality. Positive discrimination. Affirmative Actions. Social discrimination. Racial quotas.

 

1.      DEFINIÇÕES INTRODUTÓRIAS

Este estudo visa analisar a discriminação positiva realizada através das ações afirmativas das cotas raciais, pretendente a sopesar os resultados provenientes deste sistema, de maneira a verificar a aplicação da igualdade de fato no solo nacional, visando apagar as marcas das discriminações negativas provenientes de um passado mórbido brasileiro, pretendente, com isso, a remover os sinais das algemas das mãos dos antepassados escravizados e extrair de seus descendentes as lembranças dos açoites e das torturas vivenciadas por seus ancestrais nos troncos das fazendas nacionais, expressas até os dias atuais nos rostos negros e sofridos de pessoas que se encontram, ainda, condenadas às margens da lei e da sociedade.

Consciente acerca do cárcere existente na mente humana, instante em que, convém dizer, mesmo com a liberação da escravatura tendo sido feita a tanto tempo atrás, as marcas ainda restam em seus pulsos, de forma que, a cada vez que um negro, busca uma vaga em sala de aula, ou uma vaga de emprego, no mesmo instante em que estende a mão para cumprimento, ele mesmo recorda de tudo que seus antecedentes vivenciaram e cria uma espécie de obstáculo que encerra por fazer com que veja a si mesmo, como alguém inferior, marcado por um passado de submissão, diante disso, conforme verifica-se através do passado histórico brasileiro, muitos outros descendentes provieram de suas culturas com intuitos semelhantes, e por este motivo, veem-se, da mesma forma como simples mão-de-obra nas mãos de alguns poucos.

Desta forma no primeiro item, a autora efetuará uma viagem histórica buscando a origem do direito a igualdade, e sua linhagem construída no decorrer do tempo, analisando desde os principais documentos internacionais jurídicos até alcançar a atualidade, para então, analisar a novel Constituição Republicana de 1988, e diante dela, verificar suas ramificações no solo brasileiro atinentes à efetivação da igualdade de fato, consubstanciada em leis esparsas protetivas contra o preconceito e as discriminações relacionadas à raça, cor, origem ou nacionalidade, diante das quais, a autora transcreverá neste documento suas principais passagens, atualizando o leitor sobre o reforço protetivo que o sistema jurídico brasileiro confere a estas minorias.

Acobertado pelo manto jurídico, no segundo item, será então analisado as ações afirmativas relacionadas à matéria, munida pelo arcabouço jurídico e pelos princípios humanitários, para então, ponderar sobre a linha tênue que interliga a igualdade, a desigualdade e a discriminação, efetuando um sopesamento destes fatores, de forma a encontrar uma solução que equilibre estas condições, oferecendo ferramentas para que as pessoas, expostas a esta marginalização, possam lutar por uma vida digna, nos moldes da Carta Magna.

Ao final, no terceiro item, a discussão irá se concentrar no fato de que, alguns estudiosos têm alegado que o sistema de cotas raciais tem gerado o inconformismo social em função de que o mesmo atua sobre os resultados e não sobre as causas das discriminações, por isto, apresenta uma solução superficial, e ao invés de solucionar a problemática causa a exclusão social da pessoa privilegiada pelo sistema, sob a alegação de depreciar a qualidade do ensino ou do cargo público ao possibilitar o ingresso de um indivíduo por meio de um privilégio e não por sua capacidade intelectual, havendo, inclusive, quem alegue a inconstitucionalidade destas ações afirmativas, sob a justificativa de que a mesma lesa o princípio da igualdade, fato este que será analisado em conformidade com a lei pátria e internacional, e com o entendimento de doutrinadores e tribunais brasileiros.

 

2.      A UNIVERSALIZAÇÃO DO DIREITO À IGUALDADE

Movidos pelo fato de que a ignorância, o desprezo e o esquecimento pelos direitos do homem compreenderam fatores originários de todas as mazelas produzidas no solo internacional, foi que os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, firmaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão no ano de 1789, no intuito de que este documento histórico se tornasse conhecido por todos os membros do corpo social, lhes recordando de seus direitos e deveres como membros componentes do ser social, visando unificar os objetivos dos cidadãos e dos poderes da União (Executivo, Legislativo e Judiciário) pretendentes a conservar a Constituição e à felicidade geral.

Este documento abre suas expressões, colocando na cabeça dos demais artigos (art. 1°), como forma de demonstrar a importância e a necessidade da afirmação social deste princípio lapidado em diamante[1]: o direito à igualdade, pedra a qual deriva do grego adathas, e significa invencível, devido ao fato de compreender a substância mais duradoura já encontrada neste Planeta, visto que este mineral é formado por carbono puro e emerge das profundezas da terra, exposto a pressões e a temperaturas elevadas, que em similaridade com a dignidade surge do mais profundo declínio da vida humana, exposta a toda forma de tirania, como meio de clarificar a vida humana, extraindo-lhe a venda da ignorância e abrindo caminhos para uma convivência humana para com o seu semelhante.

Desta feita, na abertura das expressões deste manuscrito, vê-se expresso a ferro quente o direito à liberdade e à igualdade, sendo que as distinções apenas serão aceitas caso fundem-se na utilidade comum, em seguida (art. 2°) exprime-se o objetivo das ações políticas, o qual engloba a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis às pessoas, e exemplifica fazendo expressão à liberdade, a segurança, a propriedade e a resistência à opressão, o art. 5° fecha a questão ao destacar que a lei apenas proíbe o que for prejudicial à sociedade, por isto a necessidade de respeitá-la e promovê-la, posto que, a mesma compreende a expressão da vontade geral (art. 6°), e por decorrência, é efetivadora do respeito pela igualdade inerente à todo o ser humano.

Cabe respaldo ao fato de que, o que verifica-se prejudicial em uma cultura pode não ser visto pelo mesmo olhar de outra, por isto, a necessidade de respeitar os ideais, principalmente os culturais, já que estes encontram-se impregnados no solo de cada país fazendo emergir desde o chão alguns princípios norteadores destes. No entanto, algumas questões merecem abertura e estudo, pois cabe a todas as culturas aderirem a um mínimo de respeito capaz de proporcionar uma vida digna a todos.

O art. 12 descreve o fato de que as efetivações dos direitos da pessoa humana devem provir de uma força pública, a qual é instituída e conservada através da vontade geral (art. 13). Este documento expressa o pensamento individualista do ano de 1789, visto que firmou o direito à igualdade e a liberdade em praticamente todos os seus 17 artigos, porém, compreendeu um manuscrito de tão elevada importância que seus preceitos são copiados até hodiernamente pelas constituições. O motivo de provir de uma força pública circunda a necessidade de respeito e busca geral/social da situação prevista, ou seja, a elaboração e prática do famoso contrato social.

Diante disso, chama-se direito individual o direito à liberdade e igualdade, justamente, por terem havido algumas discriminações dentro do próprio povo e da própria cultura deste povo, momento em que algumas classes eram mais privilegiadas que outras, instante em que, por exemplo, as mulheres e crianças eram vistas como objetos – ideia comum, a maioria patriarcal de todos os povos – então, emergiu do povo a necessidade de romper as algemas de suas mentes, mãos, calçadas, ambientes de trabalho e lares, quebrar este cordão umbilical de que, algumas classes são e devem ser mais valorizadas que outras.

Partindo do ponto individualista, tornou-se imperativa, a necessidade de elaborar um documento dotado com o mesmo teor supranacional e nobre como ocorreu com o documento retro transcrito, instante em que se formou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual foi adotada e proclamada através da resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, a qual considerou em suas linhas o reconhecimento da dignidade como algo inerente a todos os membros da família humana, na mesma linha que proclamou a igualdade de direitos entre os mesmos, sendo estes direitos inalienáveis, tal como ocorre com a liberdade, a justiça e a paz mundial.

Verifica-se que o direito ouviu o clamor social por atenção as suas necessidades e com isso, as expressou em um documento visando que o sofrimento destes seres humanos não caísse no vão do esquecimento, abandonados as margens da sociedade, onde mãos-de-obra inapropriadas para o trabalho eram largadas – entre becos e valas - sem direitos ou reconhecimento por seus serviços, mulheres eram impedidas de seus direitos cívicos, crianças eram impedidas de frequentar um ambiente escolar, enfim, através da expressão destes direitos, tidos como imprescindíveis a todas as nações, visando uma visão igualitária e humana umas sobre  as outras, convidou-os – seres humanos- a se verem como irmãos, chamando-os: família humana.

A mesma reforçou o fato de que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos compreenderam alicerces para a prática da toda a espécie de barbárie humana, resultando no ultraje da consciência humana – abandono em suas mentes do ideal humanitário que compactuaria com o contrato social -, desta forma, como meio de extraí-los deste cárcere privado em que se colocaram, proclamou como a mais alta aspiração internacional a liberdade de falar, acreditar e de viver, afirmando sobre a essencialidade de expressar os direitos humanos através do império da lei, para que os membros da família humana nunca se coloquem uns contra os outros, desconsiderando-se uns aos outros com base em cor, credo, ou classe social, fazendo-se basilar o desenvolvimento de relações amigáveis para com os parentes (humanos) residentes em outras nações.

Esta Carta foi escrita em fios de ouro[2], visando promover a fé mundial nos direitos humanos, que em similaridade com este metal apresenta como características o brilho que dá impulso à vida dos seres humanos, a densidade, que dá solidez ao desenvolvimento da vida, a maleabilidade, que propicia a coexistência humana, ou seja, a vida social, é essa triplicidade que traz alicerce para o respeito aos direitos de si mesmo e de seus semelhantes.

A base desta declaração de direitos embasa não apenas a crença nos direitos humanos, mas também, na dignidade, na igualdade entre os membros desta família, e no valor do ser humano, objetivando promover o progresso social e o melhoramento de suas condições de vida por meio do respeito pela liberdade, projetando a união entre as nações, com vistas a promover “o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância destes direitos e liberdades”, sendo que a efetuação de uma visão fraterna referente a estes direitos e deveres é a base para que os mesmos se cumpram na medida em que esta Carta os declara.

A promulgação deste manuscrito firmou-se em ideais comuns entre os povos, visando que cada indivíduo pertencente a cada sociedade tivesse conhecimento das expressões desta epístola e que, diante disto, se esforçasse para cumpri-la, por meio do ensino e da educação, promovendo sua materialização no solo de todas as nações da família humana, assegurando seu reconhecimento e observância universal.

A exemplo da declaração anterior, esta missiva inicia seus dispositivos declarando o direito à liberdade e igualdade em dignidade e direitos entre as pessoas, solicitando das mesmas que ajam umas para com as outras com espírito de fraternidade. O art. 2°, robustece o direito à igualdade indistinta entre as pessoas, incansavelmente, no art. 3° novamente esta Carta assevera o direito à liberdade, coadunado ao direito à vida e à segurança pessoal, adiante, o art. 6° possui as expressões, chaves de todos os ordenamentos jurídicos existentes, que profetiza o direito de “todo o ser humano ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa”, o art. 7°, perseverante, reforça o direito à igualdade em todos os setores da vida humana (inclusive jurisdicional).

Não menos importante, o art. 22 descreve em suas linhas o direito que toda  a pessoa possui, devido ao fato de compreender-se como um membro da família humana, isto é, usufruir do direito à segurança e de realizar-se como pessoa através do esforço conjunto dos integrantes da sociedade, efetivando sua dignidade e o desenvolvimento de sua personalidade, já o art. 23 expressa o direito ao trabalho, a liberdade de escolha de emprego, em condições consideradas justas e favoráveis a integridade da pessoa humana, obtendo, por sua vez, o direito a remuneração justa e satisfatória que assegure a si e sua família uma existência digna, que promovam um padrão de vida que, de acordo com o art. 25, tenha capacidade de assegurar-lhes uma vida saudável e detentora de bem-estar.

O art. 28 carrega em seu corpo, as vestes condizentes com o direito de que toda pessoa humana possa usufruir de uma ordem social e internacional em que os direitos humanos sejam plenamente realizados, robustecido pelo art. 29 que expressa o fato de que, coadunados aos direitos percebidos através destes documentos coexistem os deveres que todas as pessoas possuem com relação a sociedade – por ser membro desta-, fechando seus dispositivos através do art. 30 que assevera o fato de que nenhuma, das expressões contidas neste caderno de leis poderá ser usada em desfavor da família humana e de sua dignidade. Sublinha-se, aqui, a ressalva que pede o reconhecimento da pessoa em sua condição de pessoa humana em todo o lugar que transite/esteja, e de que, por ser pessoa, tenha o seu direito de realizar-se, como tal, sem que este – e outros - direito seja usado em seu desfavor.

Após foi promulgado o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, mais precisamente no ano de 1966, passando a viger em solo brasileiro no ano de 1992, o qual expressa, tal como o metal[3] - do grego metalón, que por sua vez, compreende um elemento, substância ou liga metálica caracterizada por sua boa condutividade elétrica e por seu calor, expresso na cor prateada, detendor de elevada dureza –, na cor vibrante da prata o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como elemento caracterizador da família humana, substância esta, que tal como o metal, atua como condutor de humanismo às ações dos indivíduos, produzindo calor para aquecer os corações humanos, sendo expressos de forma rígida nas Cartas Constitucionais, como forma de aguentar as possíveis investidas contra a sua existência jurídica, funcionando como um resistente alicerce ao respeito pelos direitos iguais e inalienáveis do homem que dão fundamento à liberdade, à justiça e à paz mundial.

Este Pacto concebe a ideia de que as nações possuem a obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos, liberdades e deveres do homem, sendo imperativo que os Estados criem condições para que os direitos intrínsecos a sua condição humana se realizem. Este documento abre seus dispositivos (art. 1) destacando o direito à liberdade plena, expressando na primeira parte do art. 2° o respeito e a garantia dos direitos dos indivíduos pertencentes ao seu território, indiferente de motivos de raça, cor, sexo, língua ou etc., visando tornar efetivos os direitos expressos neste Pacto, reforçado através do art. 3° que expressa comprometimento entre os Estados Partes do referido documento de assegurar, aos homens e mulheres, a igualdade no gozo dos direitos nele descrito.

No art. 6° se apresenta a proteção ao direito à vida, o art. 8° traz a proibição da escravidão e da servidão, o art. 26 proíbe qualquer espécie de discriminação, garantindo, através de lei, proteção igual e eficaz contra este tipo de ocorrência. De forma geral, os 53 dispositivos deste manuscrito prescrevem os direitos indispensáveis à família humana, suas formas e exigências de promoção por parte dos pactuantes. Este primeiro pacto retratou acerca dos direitos individuais, no entanto, o mesmo não foi criado sozinho, pois junto a ele, emergiu o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos e Sociais, ratificado pelo Brasil em data conjunta.

O qual, tal como o rubi, detém importância rara à vida humana, sabendo que esta pedra preciosa é formada próximo aos vulcões, é possível determinar que estes direitos são formados a partir de fortes impactos sociais, como os provenientes de guerra e dos regimes autoritários, os quais guardam em si, as marcas dos mais profundos declínios humanos, de modo similar, sabe-se que o rubi possui a dureza em escala Mohs[4] 09, perdendo unicamente para o diamante que possui escala 10, da mesma forma este documento é de essencialidade única, perdendo somente para a Declaração dos direitos do homem e do cidadão e a declaração dos direitos humanos, em razão de ser proveniente destas expressões, e contêm em si diretrizes elementares para a vida humana, e diante disto precisa deter força suficiente para continuar íntegro frente aos desrespeitos promovidos pelo homem.

O art. 1° expressa o direito à liberdade da pessoa humana, o art. 2° traz o pacto realizado entre os Estados Membros de promoverem estes direitos em seus territórios, o art. 3° reforça o direito à igualdade na esfera social, o art. 5° contêm em si o embasamento para uma convivência humana e fraterna entre as pessoas, o art. 6 e 7 trazem o direito ao trabalho em condições dignas, já o art. 11 expressa o direito à uma vida digna aos conterrâneos, asseverando na segunda parte deste artigo o direito à proteção contra a miséria, reforçado através do art. 12 que esculpe neste rubi[5] o direito dos indivíduos desfrutarem do “mais elevado nível possível de saúde física e mental”. Ou seja, busca-se resistir a opressões e autoritarismos, refugiar-se das cinzas vulcânicas que visões e posicionamentos centralizados possam ocasionar visando manter a integridade da saúde física e mental de todos.

Ao final, este Pacto assevera a elaboração de um Conselho Econômico e Social, que objetiva fiscalizar o cumprimento de suas diretrizes entre os Estados participantes, a exemplo do Pacto anterior, que também prevê a elaboração de um Conselho referente à área de direitos individuais, este compactua-se em direitos sociais, contendo apenas 31 artigos, os quais abrangem os direitos indispensáveis a uma vida digna, enquanto o pacto de direitos civis embasa 53 artigos. Vê-se ainda, que os direitos individuais são mais buscados pela sociedade, o que confere afirmar que a Declaração dos Direitos Humanos não foi difundida o suficiente e que o povo, no geral, continua com suas mentes algemadas embora, esteja com os pulsos livres.

Da esfera internacional para o solo pátrio, além da ratificação destes dois pactos, o ordenamento jurídico brasileiro adotou a Constituição de 1988, proveniente do povo, que se fundamentou (art. 1°, inc. II e III) na cidadania e na dignidade da pessoa humana, pedra angular para a formação do Estado Democrático de Direito, o qual possui como princípio edificante (art. 4°, inc. II, V, VI, VII, VIII e IX) a prevalência dos direitos humanos, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, e a busca pela solução pacífica dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Adiante, no folhear deste caderno de leis, encontrar-se-á o art. 5°, que tal como o quartzo[6] apresenta expressões cristalinas, e da mesma forma que a pedra que compreende o mineral mais abundante da terra, este artigo embasa em si 78 incisos, que, por sua vez, a exemplo da pedra preciosa que se apresenta em uma variedade de cores conforme os elementos presentes em sua fórmula, este artigo oferece as cláusulas pétreas do sistema legal nacional, lapidado em quartzo a maior variedade de direitos e garantias fundamentais, até então, expressas em uma Constituição, alguns petrificados nestas linhas de forma que considerem-se imutáveis – proibição de restrição ou diminuição de seus preceitos.

Na cabeça deste artigo (caput) encontra-se a expressão do direito a igualdade frente à lei, lapidada nesta pedra preciosa, sendo garantindo aos membros da família humana o direito à vida, à liberdade e à igualdade, tendo suas expressões irradiadas por todo o solo brasileiro, direcionando o ordenamento jurídico à sua promoção, no seguimento dos incisos deste artigo, onde o inciso I expressa a igualdade entre homens e mulheres, sendo que o inc. XLI define punição para qualquer discriminação relacionada a direitos e liberdades fundamentais, e adiante no inc. XLII assevera que é considerado crime inafiançável e imprescritível a prática de racismo, sujeito à pena de reclusão.

Constata-se que, do solo internacional para terrae brasilis, buscou-se o máximo possível respeitar os direitos humanos imprescindíveis as pessoas, formando um comungar de ideais em que a sociedade seja colocada em primazia, em um ponto chave de tudo isso evidencia-se a busca pela contenção do racismo.

É com base nestes fundamentos jurídicos que se pretende dar seguimento ao presente estudo, analisando as ações afirmativas como um meio de promover a igualdade entre os grupos sociais, auferindo a possibilidade de que as discriminações positivas apresentem êxitos no solo nacional, conforme será analisado a seguir.

 

3.      AÇÕES AFIRMATIVAS COMO SOPESAMENTO ENTRE A IGUALDADE, A DESIGUALDADE E A DISCRIMINAÇÃO

É sabido que extinguir a desigualdade por completo do solo brasileiro é algo impossível de ocorrer em função da própria organização do Estado, no entanto, a todo instante são criadas ações afirmativas pretendentes a, pelo menos, amenizar esta forma de ocorrência, visando efetuar um sopesamento entre a igualdade e a desigualdade com vistas a equiparar as condições de vida das minorias, pretendendo extrair estes grupos marginalizados das ruas das cidades e amenizar-lhes os efeitos decorrentes das discriminações históricas sofridas, especialmente as relacionadas às raças, cuja qual, compreende a manifestação de repúdio mais frívola efetuada pelo ser humano, visto que expõe as margens da lei e da sociedade uma pessoa, unicamente, pela sua cor.

Nada obstante, toda forma de repúdio concebida através de um preconceito merece por si mesma ser descartada, afinal, baseou-se em uma opinião sem juízo valorativo, por ter sido concebida sem exame crítico, porém, a que se relaciona com a cor do indivíduo provém dos primórdios humanos, instante histórico, em que estas pessoas humanas eram coisificadas e consideradas como mercadorias pelos seus senhorios, sendo escravizadas e vendidas como se fossem objetos, tratadas analogamente a animais.

É imperativo que o homem moderno acobertado pelas mais belas escrituras jurídicas já vistas, abra sua visão no que tange a estas pessoas, posto que na essência todos os indivíduos são iguais, visto que são formados pelos mesmos componentes, sendo por isto merecedores de serem considerados em sua condição de pessoa humana, como clama a DUDH, como visto no item anterior, por isto, manter as correntes do escravismo no pensamento humano é uma ideia mais que antiquada, porquanto, é incompatível com o ordenamento jurídico existente e com os valores elencados nas Cartas Legais vigentes.

É contundente quebrar as algemas que prendem a mente humana e condicionam-na às ideias ultrapassadas, sob as penas da lei e do exílio social, afinal, no mundo jurídico para o qual a sociedade se encaminha não há espaço para a pequenez, tanto que o ordenamento jurídico encontra-se em constante mutação acompanhando a evolução humana, e conforme foi possível estudar até esta página, as discriminações negativas não apenas são ilegais como, também, são atentatórias a esta forma estatal, tanto que a Carta brasileira alicerçou-se no princípio da dignidade da pessoa humana e esculpiu como seu objetivo a exclusão da marginalização e das desigualdades, pretendente a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na busca pelo bem de todos, indistintamente (art. 1°, III e 3°, I, III e IV).

Diante disto, ainda no ano de 1969 o Brasil assinou o Decreto n° 65.810, promulgando a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, tendo como base os princípios elencados nas Declarações de Direitos Humanos, vista anteriormente, visando unificar as ações das nações na busca pela efetiva eliminação das descriminações raciais[7], encorajando o respeito universal e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais indistintamente, destacando solenemente a prevalência do valor da pessoa humana acima de toda forma de preconceito, destacando a supremacia da dignidade da pessoa humana.

No entanto, transcorridas tantas décadas, a discriminação continua vivamente percorrendo os lábios dos cidadãos, formulando as mais duras palavras cuspidas na cara de seres humanos, que se veem discriminados e eliminados de círculos sociais puramente por sua cor, escreve-se muito em busca da prevalência do valor da pessoa humana, por sua condição de ser humano, no entanto, nas ruas: a realidade está distante disso.

Nesta convenção, todos os Estados Partes comprometeram-se em não realizar atos que discriminem ou que promovam discriminações raciais, formando uma aliança pretensa a criar medidas eficazes no combate a este tipo de ilicitude, além de acordar em agenciar políticas públicas que promovam a inclusão social destes seres humanos, inserindo-os na sociedade em igualdade de condições para com os demais, o termo acordar é aqui usando, pretendente a extrair o cidadão de seus berços expendidos em que se veem agindo de modo automático, seguindo o que se pode definir sociedade de massa – que reúne uma porção de pessoas e agem de modo uniforme por acreditarem estar certos, ser ter uma base crítica e, até mesmo, legalista com relação a matéria: é o fazer porque os outros fazem.

De maneira ampla em seus 25 artigos esta Carta especifica as medidas que devem ser tomadas pelos Estados Partes no que tange a matéria, fortificando a necessidade de descortinar os cidadãos para o fato de que, a cor de pele ser amarela, parda, negra ou clara não atua sobre o ser humano a não ser como identificador de suas características, visto que a mesma não age sobre a inteligência ou os valores das pessoas, cada ser humano é como é, devido a outros critérios como a educação recebida, por exemplo, e não por causa do seu tom de pele. Uma pessoa não é melhor que outra, ou possui mais valor por ter o tom de olhos claros ou a pele bronzeada.

Vinte anos após, o Brasil sancionou a Lei n° 7.716, de 05 de janeiro de 1989, a qual, abre as suas expressões, através do art. 1° ao definir punição para os crimes resultantes de discriminações ou preconceitos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, prescrevendo, em seus 22 artigos penas que variam entre um a cinco anos de reclusão para quem impedir ou obstar acesso de alguém, por motivos de preconceito ou discriminação à ambientes públicos ou privados ou ao exercício de cargos públicos ou privados (inclusive os ambientes educacionais).

Sendo que o art. 20 define que o indivíduo que praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito em função de raça, cor, etnia, religião ou precedência nacional incorre na pena de reclusão de um a três anos e multa, sendo o crime majorado nos casos do §1° quando se tratar de conduta que fabrique, comercialize, distribua ou veicule “símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propagandas que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo” definindo pena de reclusão de dois a cinco anos e multa.

Estas sanções justificam-se como meio de aviventar nos corações humanos a sofrível vivencia das pessoas submetidas aos campos de concentração nazistas, que objetivando operar o império da raça ariana causaram a mutilação de milhões de pessoas, e ceifaram a vida de outras tantas, sendo que, se qualquer das condutas, previstas no caput ou no §1°, forem cometidas através de meios de comunicação social, visando à propagação em massa destas ideias mundanas, o agente sofrerá um acréscimo de pena podendo ser condenado à reclusão de dois a cinco anos. Isto é, a pessoa pode utilizar-se de meios eletrônicos para incitar a população a realizar atos de exclusão e, fazendo isso, cria a sociedade de massa, aquela que age porque o outro faz, e sofre um acréscimo de 2 a 5 anos de prisão, ou seja, a pena é desigual com relação ao teor do crime, é incapaz de produzir contenção por si mesma.

De outra mão, verifica-se que é incansável a atitude do legislador pretendente a eliminar a ocorrência de preconceitos e discriminações em terrae brasilis, isto justifica a busca por medidas de cunho inclusivo, com capacidade de remediar os feitos desumanos cometidos no passado, e quebrar a corrente mental que perpetua a ideia de alguém ser mais ou menos que outra pessoa em razão de características exteriores, quando na verdade, as pessoas são valorizadas por sua condição de ser humano, a qual é igual em todos os cidadãos. Não obstante, por ação afirmativa Gomes (2001, p. 41), compreende as “políticas e mecanismos de inclusão” ofertados pelas entidades públicas, pretendentes a dar vida à letra de dispositivos constitucionais universalmente reconhecidos, efetivando a defesa da “igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito”.

As ações afirmativas emergiram no solo brasileiro como um meio de igualar as condições entre os grupos discriminados. De acordo com Halbritter (2012), “sua finalidade primordial, mais do que prevenir, coibir e punir atos discriminatórios, é gerar condições para que as consequências sociais concretas da discriminação passada ou presente sejam progressivamente amenizadas, até que se alcance o objetivo maior” de promover a igualdade. Lewandowski (2012) define as políticas afirmativas como descriminações positivas, termo este utilizado pela Europa como elucida Souza Neto e Feres Junior (2008, p. 345).

Neste enfoque, a Suprema Corte dos Estados Unidos concluiu pela constitucionalidade das discriminações positivas, isto é, da utilização de critérios raciais, na implementação de políticas públicas, que visem promover a diversidade nas áreas empregatícias e educacionais, desconcentrando estas áreas das mãos de alguns poucos, objetivando equilibrar os grupos sociais, como profere Gomes (2001, p. 77/78). Foi no território estadunidense que emergiu o termo ações afirmativas, esta ideia surgiu dos movimentos políticos em prol da democracia e dos direitos civis, os quais protestavam pela extensão do manto da igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, em conformidade com o discurso do presidente dos Estados Unidos da América Lyndon Johnson (apud GOMES, 2001, p. 57), in verbis:

 

Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma corrida e então diz: "você está livre para competir com todos os outros" e, ainda acredita que você foi completamente justo. Isto não é o bastante para abrir as portas da oportunidade. Todos os nossos cidadãos têm que ter capacidades para atravessar aquelas portas. Este é o próximo e o mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Nós não procuramos somente liberdade, mas oportunidades. Nós não procuramos somente por eqüidade legal, mas por capacidade humana, não somente igualdade como uma teoria e um direito, mas igualdade como um fato e igualdade como um resultado.

 

Neste ponto, as ações afirmativas visam impulsionar a pessoa em razão de características próprias, no caso, o tom de pele, criando as denominadas cotas raciais em que uma porcentagem de vagas de determinada situação, exemplo, vaga em universidades ou cargos públicos, são destinadas a uma parcela da população em razão das mesmas serem negras Neste instante é feita uma discriminação positiva, discrimina-se o branco para incluir o negro, em razão do passado histórico e desprivilegiado que este teve, visando uma igualdade em oportunidades, considerando critérios como o fato de que a taxa de desemprego é maior entre os negros, por este motivo, a educação deste poderia encontrar-se, com mais chances comprometidas., o que não o descarta, mas o deixa para traz em algo que ele estaria apto, de igual forma a desenvolver.

De outra forma, em razão de que as classes mais desprivilegiadas ainda são compostas por maioria negra, no caso do Brasil, sabe-se que o índice de jovens que dividem seu tempo entre estudo e trabalho é maior com relação aos mesmos, o que resulta em um cansaço físico e mental maior nestes, direcionando-os a um grau de aparente menor aptidão com relação ao estudante que utilizou-se de uma vida tranquila e digna, em que ocupou-se apenas em estudar e que muitas vezes, utiliza-se de conhecidos influentes para conseguir as vagas pretendidas.

Estas políticas são concretizadas por meio de lei e da atuação dos tribunais, em decorrência das discriminações constatadas principalmente nestas áreas sociais, desta maneira esta discriminação positiva se explica por objetivar o equilíbrio entre as relações sociais, compatibilizando-se com os princípios da igualdade e da fraternidade. As ações afirmativas são definidas através do Ministro Gomes (2001, p. 40/41) como sendo:

 

[...] um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas a combater a discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitiva, que se singularizam por oferecerem as respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas tem natureza multifacetária, e visam a evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo.

 

Concordante com este entendimento, Bergmann (1996, p. 7) resume as políticas discriminativas positivas como o planejamento e atuação promovedores, de certos grupos de pessoas, compostos por minorias excluídas socialmente em áreas relacionadas com empregos e educação, embasa ações afirmativas pretendentes a romper com a trajetória humana mobilizada pelo pensamento escravagista, de maneira a resgatar a cidadania destes cidadãos, atuando como um instrumento para corrigir a ignorância humana afirmada no preconceito, a partir da oferta de oportunidades entre as pessoas, como elucida Moreira (2012).

Os debates realizados no plano internacional serviram ao Brasil como meio de fazer entender que estas ações desenvolveram uma variedade de faces, instante em que, conforme o Ministro Mello (2001), as ações brasileiras evoluíram “de uma igualização estática negativa”, a qual se baseava simplesmente em formalizar a proteção a estas minorias através do império da lei, proibindo e sancionando a discriminação e o preconceito, evoluindo para uma igualização eficaz, pautada em verbos que denotam ação, como, por exemplo, construir, garantir, erradicar e promover. Sem abandonar o viés legal utilizado após o fato discriminatório, passou-se a utilizar alternativas para evitar estas discriminações.

Outrossim, “não basta não discriminar. É preciso viabilizar as mesmas oportunidades”. As legislações devem assumir uma postura afirmativa, e, conforme o Ministro, urge o instante em que a população acorde para o fato de que “os homens não são feitos para as leis; as leis é que são feitas para os homens”, desta feita, da Constituição emana luz suficiente para agasalhar as ações afirmativas, conscientes sobre o fato de que “o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual”.

Vilas-Bôas (apud Moreira, 2012) constata em análise a Carta Magna que ela não apenas possibilita a criação de ações afirmativas, visando diminuir “as desigualdades sociais e promover o bem de todos”, como também, expressa no texto do seu corpo situações que caracterizam a viabilidade das discriminações positivas, através do emprego de verbos como erradicar, reduzir e promover, os quais exigem por parte do Estado uma ação positiva. No entanto, não é possível fugir do fato de que muitos cidadãos brasileiros veem as ações afirmativas como uma discriminação do avesso, devido ao fato de favorecerem um grupo de indivíduos em detrimento de outro, as vendo sob os olhos da inconstitucionalidade. As ações afirmativas visam um buscar, enquanto a lei anterior buscava, um abster. Agora busca-se o incluir, antes focava-se no deixar de discriminar.

Contudo, para os que as veem como um direito, a constitucionalidade destas medidas se afirma no fato de possibilitar a correção de situações reais de discriminação, proporcionando a emersão da igualdade de fato ao solo brasileiro. Robustece este entendimento o autor Alexy (2009, p. 50) ao afirmar que a arbitrariedade apenas ocorre diante da falta de uma justificativa para a desigualdade operada, o mesmo sustenta existir um dever por parte do Estado em tratar desigualmente os cidadãos na medida de suas desigualdades, promovendo a tão sonhada igualdade de fato, a qual é diferente da igualdade de direito – igualdade de direito é quando duas pessoas concorrem a uma vaga ao curso de mestrado, por exemplo, onde se exige que se saiba inglês para o ingresso ao curso; já a igualdade de fato é aquela que permite ao aluno que não tenha conhecimento nesta língua estrangeira o seu ingresso devido a sua capacidade intelectual-, isto é, possibilita a efetividade da igualdade humana no mundo dos fatos.

Adiante, a criação de cotas nos diversos setores da sociedade é um meio restritivo de produzir resultados positivos no solo pátrio, o entrave relacionado ao assunto paira na discussão pela busca de atingir, primeiro, as causas destas desigualdades, para que seja possível promover a igualdade verdadeira entre os cidadãos, justificado no fato de que as cotas atingem os resultados e não as causas. É com vistas à investigação destas origens e de prováveis soluções para estas dificuldades que se pretende dar continuidade a este estudo.

 

4.      COTAS RACIAIS: MEDIDAS DE CUNHO INCLUSIVO OU EXCLUSIVO?

A discussão centraliza-se acerca da eficiência deste sistema de cotas como meio solucionador das causas de desigualdade, em razão de que, estas medidas discriminatórias positivas atuam sobre o resultado da desigualdade e não sobre os fatores que a ocasionam, teme-se que, como forma de promover a inclusão social, esteja-se inserindo uma pessoa despreparada para o caso em questão, e excluindo, por sua vez, outra pessoa que estaria mais preparada tecnicamente para ocupar a vaga em questão, em razão de que, no entendimento de Halbritter (2012), as cotas não emancipam o indivíduo, ao contrário, pois possibilita que sua inserção social fique dependente de ações governamentais.

Diante disto, o Coronel Edivar[8] (2012) define a condição de ser humano de uma pessoa, unicamente por sua característica “de sentir compaixão ou piedade pelo sofrimento alheio”, para ele o Estado Democrático de Direito que recebe forças para existir do seu povo, conforme expressa o parágrafo único do art. 1° da Carta Magna, define-se pela humanidade, afinal, em seu entendimento, a democracia embasa “a liberdade de associação, e de expressão sem privilégios de classe, sem distinções e preconceitos. É justiça sem justiçamento. É tratar diferente os desiguais. É punir os culpados e absolver os não culpados, já que quem comete crime não é inocente”.

Este estudioso considera que é possível que os funcionários públicos no desempenho de suas atribuições promovam as modificações necessárias visando dar efetividade as leis existentes, afinal, estes cargos públicos são ocupados por pessoas que laboram diretamente com cidadãos de fora do ambiente público, e ao manter contato com estas pessoas, os mesmos possuem mais facilidade para constatarem as mudanças necessárias para dar amparo aos indivíduos desassistidos de seus direitos e garantias, diante do fato de que a lei não se efetiva sozinha, ela precisa das mãos humanas para ser aplicada e por mais que o legislador se esforce para defini-la, o mais ampla possível, sempre haverá casos em que apenas alguém que esteja fora deste recinto, em contato mais próximo com os marginalizados, poderá, verificar as necessidades destes seres e as medidas que devem ser tomadas para incluí-los socialmente.

Neste enfoque, Pondé (2012, p 29) ironiza que “a sensibilidade democrática odeia esta verdade: os homens não são iguais, e os poucos melhores sempre carregam a humanidade nas costas”, para o autor o homem que ele define como “politicamente correto” é aquele que sempre está buscando revolucionar, modificar comportamentos, hábitos, linguagem e gestos pretendentes a efetuar a inclusão social de grupos que ele define como minorias, os quais, ora se refere às mulheres, ora aos gays, outrora aos idosos, a partir daí é um salto para se tornar ações afirmativas, ou seja, políticas públicas que visem realizar este processo de inclusão. Para o autor, o politicamente correto torna-se autoritário, porque acredita estar salvando o mundo. Forma uma massa de inaptos, define-os, discriminados então, busca-se uma política pública que o ampare, ao invés de oportunizar melhoria educacional que o prepare.

No entanto, é preciso conscientizar-se de que “alguns poucos capazes são sempre responsáveis pelo mundo”, diante disto, para Pondé (2012, p. 38), a função da educação é identificar nos alunos as características que se destacam e impulsioná-las colocando-as a serviço da sociedade, posto que, “os melhores lideram, os médios e medíocres seguem”, diante disto, “uma das maiores besteiras em educação é dizer que todos os alunos são iguais em capacidade de produzir e receber conhecimento”, em seu entendimento (2012, p. 39), “o mundo sempre foi mau e continuará a ser, porque ele é fruto do comportamento humano, que parece ter certos pressupostos naturais”. Isto posto, constata-se que (2012, p. 39):

 

Para os defensores do politicamente correto, tudo é justificado dizendo que você é pobre, gay, negro, índio, ou seja, alguma das vítimas sociais do mundo contemporâneo. Não se trata de dizer que não há sofrimento na história de tais grupos, mas sim dos exageros do politicamente correto em querer fazer deles o proprietário do monopólio do sofrimento e da capacidade de salvar o mundo. O mundo não tem salvação.

 

A pessoa que se destaca socialmente por meio de sua inteligência, denominada pelo autor como aristoi, compreende um indivíduo que sofre mais que o homem comum, pois se dedica mais aos seus objetivos, enfrentando as adversidades e lutando pelos resultados pretendidos, é como o caso citado pelo Coronel Edivar, em que o funcionário, seja de qual hierarquia for, aproveita as oportunidades que lhes são conferidas e enxerga além da simples elaboração de seu trabalho, pois vê naquele local a oportunidade de inovar, de criar oportunidades, de modificar o ambiente para melhor, e aproveita esta conveniência transformando a atmosfera e criando alternativas para as mazelas enfrentadas, indo de encontro a “observação do comportamento humano e da experiência histórica” nas quais os homens simplesmente esperam os resultados, na forma do hino nacional brasileiro, “deitado eternamente em berço esplêndido”, à espera da solução.

Rand (apud PONDÉ, 2012, p. 41) apresenta um mundo dominado pelos ideais socialistas, pela mentalidade coletiva e por este motivo, preguiçosa, para ele “a igualdade ama a mediocridade”, a sociedade ao falar em bem comum e igualdade entre os indivíduos dissemina a preguiça e a nulidade de ações, pois ao destruir as injustiças, o mundo destrói a produtividade, ocasionando a paralisia mundial, para Rand (apud PONDÉ, 2012, p. 42), “uma pessoa corajosa, trabalhadora, inteligente e ousada produz a sua volta relações humanas (sejam elas econômicas, políticas, existenciais) concretas que são úteis, abundantes, produtivas”, o mesmo exemplifica ao definir que a “coragem produz no mundo ganhos materiais para todo mundo. Preguiça e covardia produzem miséria, mesquinhez, mentira. Isso mesmo: força e coragem fazem as pessoas verdadeiras nas suas relações, enquanto a ausência de virtudes como essas as faz mentirosas e traiçoeiras”.

Os autores afirmam que “a maior parte da humanidade sempre viveu às custas de uma minoria capaz e mais inteligente”, para os estudiosos o óbvio é que “poucos carregam muitos”. Em seu raciocínio Pondé (2012, p. 43) não pretende destruir a ideologia das vítimas, ao contrário, visa fomentar e impulsionar dentro dos seres humanos a busca individual pela ascensão social sem esperar por uma ação governamental, como o exemplo do presidente dos Estados Unidos, Obama, o qual é negro e não precisou de cotas para eleger-se. Teme-se que, mesmo com a carta de alforria assinada e as algemas quebradas, as mentes humanas continuem escravizadas aos costumes, ao comodismo.

Ademais, a democracia é feita da antinomia entre a liberdade e a igualdade, sempre que é dado “espaço para a liberdade, a tendência é de que a democracia acentue as diferenças entre as pessoas e os grupos que nela vivem”, porém, a liberdade compreende a chave da capacidade criativa e empreendedora do homem, como salienta o referido autor (2012, p. 49/50), o espírito de competir por uma vaga, seja de trabalho ou de faculdade, faz com que o homem se supere e se esforce para conseguir, teme-se que a política de cotas desencadeie a preguiça e a baixa qualidade pessoal e baixa produtividade.

As críticas referentes ao assunto são inúmeras, dentre os motivos considera-se que o sistema de cotas “ataca somente os sintomas e não as causas e ignora que o verdadeiro problema é a falta de qualidade do ensino público”, como assevera Moreira (2012), alega-se que a mesma contraria o princípio da igualdade, e do mérito acadêmico por recompensar os menos preparados, no entanto, ao considerar-se a proliferação da corrupção no ambiente escolar, constata-se que da mesma forma que alguns alunos adentram financeiramente para comprar suas vagas universitárias, outros adentrariam utilizando-se de sua característica de minoria social, como a raça ou a deficiência física, de certa forma, igualando as oportunidades.

Porém, um ponto que merece relevo é o fato de que as cotas ocasionam a discriminação escolar, em função de que o aluno por ter adentrado no recinto universitário através de cotas é considerado como incapaz e como desmerecedor da vaga, sofrendo discriminações e ofensas por parte dos colegas e muitas vezes do professor, ponto este controverso, ao se considerar que, o aluno por sua origem no ambiente escolar, muitas vezes é mais preparado intelectualmente que o filho do pai corrupto que comprou a cadeira universitária, ou seja, o modo de entrada no ambiente escolar, não define a capacidade intelectual que o aluno detém e que irá alimentar naquele recinto.

Porém, essa discriminação em razão das cotas no ambiente escolar é um tema que merece relevo, pois faz de um aluno exemplo em sala de aula um ponto frágil, alvo de ataques de outros alunos e de funcionários da própria universidade, seja quando algum funcionário o chama para assinar o documento referente as cotas, que precisa ser assinado com regularidade, seja quando o próprio é identificado como cotista dentro da sala de aula por qualquer motivo.

Estas reações se devem à falta de planejamento governamental relacionadas às medidas, que de inclusivas encerram por excluírem. Não é inovadora a ideia de que os alunos de escolas privadas, cujos pais possuem poder aquisitivo para pagar, são mais preparados para as provas de vestibular que o aluno de rede pública, pois, a distância da educação proveniente de um ambiente e outro, é grande o suficiente, para colocar em desvantagem o aluno da rede pública, por isto, a necessidade de melhorar o ensino público e proporcionar a verdadeira igualdade de condições, visto que não há respaldo legal para a diferença de ensino que existe entre o público e o privado.

É incontestável o fato de que a igualdade formal não está sendo suficiente para promover a igualdade de fato, por este motivo apegar-se à constituição para alegar a inconstitucionalidade das cotas, é mostrar-se, no mínimo, insensível a realidade brasileira em que os mais favorecidos financeiramente dominam os mercados empregatícios e universitários.

Não se pretende com isto alegar que a política de cotas é suficiente para fechar as lacunas promovidas pela disparidade social, visto que é imperativo que o governo efetue uma reforma completa no ensino público, analisando desde o ambiente escolar até a preparação dos professores.

Ao falar-se em mérito acadêmico, Santos (2001, p. 113/114), assevera, para o fato de que, não há como deixar de considerar nos resultados das avaliações objetivas dos vestibulares, as barreiras raciais e as dificuldades que os alunos menos favorecidos passaram em sua trajetória escolar, para que se ofereçam a todos, instrumentos iguais é preciso que haja igualdade de fato, o que é de conhecimento geral que não existe. Conforme decisão proferida pelo Ministro Ayres Britto na ADI 3.330/DF ao prolatar que:

 

Não se pode rebaixar os favorecidos. O que se pode é elevar os desfavorecidos. O que ela (a lei) não pode é incidir no "preconceito" ou fazer "discriminações", que nesse preciso sentido é que se deve interpretar o comando constitucional de que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". O vocábulo "distinção" a significar discriminação (que é proibida), e não enquanto simples diferenciação (que é inerente às determinações legais).

 

Com relação à queda no nível acadêmico, os diversos estudos efetuados em universidades cotistas renderam a informação de que o desempenho acadêmico entre alunos cotistas e não cotistas é indistinto, já a informação proveniente dos EUA, relacionada à Harvard, que acompanhou por três décadas o desempenho dos alunos cotistas, constatou que os alunos provenientes da classe trabalhadora auferiram mais resultados positivos que seus colegas de classe média, principalmente, pelo fato de terem mais iniciativa, como salientou Moreira (2012). No plano legislativo brasileiro existem diversos diplomas legais defendendo o uso das ações afirmativas, como elucida Halbritter (2012), cita-se como exemplo:

 

O art. 24, XX, da lei 8.666/95 (que trata da dispensa da licitação para contratação de associação de portadores de deficiência física); Lei 9.504/97 (que adotou a cota de 30% das vagas para candidatura de cada partido ou coligação a ser destinada a indivíduos de um dos sexos – cota neutra); Lei 9.799/99 (que criou o art. 373-A, CLT, cujas disposições têm por objetivo impedir a discriminação às mulheres nas relações de trabalho); Leis 7853/89, Lei 10.098/2000 e Lei 8.213/91 (voltadas à integração dos deficientes físicos); Decreto nº 4.228/2002 (que instituiu, no âmbito da Administração Pública federal, o programa Nacional de Ações Afirmativas); Portaria nº 1156 do Ministério da Justiça, de 20/12/2001 (que instituiu o Programa de Ações Afirmativas do Ministério da Justiça) e Decreto nº 1904/96 (que instituiu o programa nacional de Direitos Humanos).

 

Estes programas afirmativos justificam-se através da teoria da justiça compensatória, que se baseia em ratificar as injustiças e as falhas cometidas contra os grupos minoritários no decorrer de seu desenvolvimento em uma espécie de dever de reparar o dano, abrindo oportunidades para que, de vitimizados, estes integrantes, adquiram ferramentas para construírem sua ascensão social, tornando-se precursores de suas vidas.

Esta teoria visa recompensar as pessoas de origem negra pelo sofrimento que seus antepassados sofreram, porém, o problema desta teoria circunda no fato de que a miscigenação de raças é predominante no território brasileiro, de forma que é difícil distinguir o antepassado escravizado do ancestral “do senhor” escravagista, sob pena de culpar pessoas inocentes, que não participaram destes atos, fato este, que seria considerado injusto nos moldes da Constituição, por este motivo, esta teoria seria afastada da prática, como relaciona Bayma (2012).

Diante disto emerge a teoria da Justiça Distributiva, a qual pretende distribuir as oportunidades de forma igualitária entre os cidadãos, “facilitando o acesso dos desfavorecidos aos bens que alcançariam caso não fossem excluídos histórica e culturalmente”. A igualdade de fato, seria apresentada aos indivíduos com base em critérios apresentados por Rawls (1997, p. 50) de igualdade de oportunidades, necessidade e utilidade individual.

Neste enfoque, o Ministro Marco Aurélio de Mello (2012, p. 7), profere com relação ao artigo 208, inc. V da Carta Magna que “a cláusula "segundo a capacidade de cada um" somente pode fazer referência à igualdade plena, considerada a vida pregressa e as oportunidades que a sociedade ofereceu às pessoas. A meritocracia "sem igualdade de pontos de partida" é apenas forma velada de aristocracia”. Diante do exposto neste estudo, foi possível auferir que a pretensão maior relacionada às cotas, embasa a concretização no solo pátrio da igualdade material, fato que justifica a política de cotas.

 

5.      DEFINIÇÕES FINAIS

Este estudo buscou aprofundar a análise sobre a aplicabilidade do sistema de cotas raciais nos concursos públicos e nas cadeiras universitárias, instante em que foi efetuada uma análise histórica nas principais leis internacionais relacionadas à matéria, encerrando o estudo jurídico ao analisar a Carta brasileira de outubro de 1988 e suas ramificações expressas em leis esparsas protetivas atinente à matéria.

Munida pelo arcabouço jurídico, a autora percorreu os principais argumentos relacionados à temática e os apresentou neste estudo, efetuando uma análise sobre os mesmos e argumentando sobre a sua incidência ou não, de forma que a discussão concentrou-se, basicamente, na alegação de que esta discriminação positiva estaria eivada de inconstitucionalidade, pois iria de encontro com o princípio da igualdade.

Momento em que foi debatido, com base legal, doutrinária e com citações de decisões jurisprudenciais que, o que estas medidas buscam, é a igualdade de fato, a qual é diferente da igualdade formal, na qual todos possam usufruir de ferramentas que possibilitem uma vida digna, justificada pelo fato de que a educação ministrada em um colégio privado é superior a fornecida em um colégio público, o que ocasiona a disparidade de intelecto recebido, que por sua vez, reflete na elaboração de uma prova objetiva de vestibular.

Reforçada pelo fato que, um aluno, de classes desprivilegiadas, conforme estudos tem demonstrado melhor desempenho em matéria escolar e serviço público, pois ele abandona seu status de comodismo mais facilmente que o aluno normal que costuma contar com a carteira do pai para obter o que deseja. Neste estudo vê-se as políticas públicas de cotas raciais como formas de inclusão, de diferenciação em respeito as desigualdades visíveis e não como meio discriminatório.

Por isto, o direito deve analisar cada caso conforme a sua particularidade, não sendo justo que um aluno que dedique sua vida ao trabalho, visando auxiliar no sustento de sua família de maneira conjunta aos estudos em colégio público, seja desprestigiado de uma vaga universitária em função de um aluno que dedicou sua vida toda unicamente aos estudos por não precisar trabalhar.

A igualdade reside na análise das peculiaridades de cada caso. E estudos demonstraram que o desempenho de alunos cotistas e de alunos não cotistas tem sido similares nas cadeiras universitárias, evidenciando que este sistema está produzindo resultados benéficos, conforme foi possível constatar do estudo em epígrafe, mas, que porém, pede vistas para as discriminações que ocorrem dentro destes ambientes em que eles foram inseridos em razão das cotas e de inseridos encerram por ser excluídos, exilados em suas cadeiras, com suas bocas seladas pela própria cota, pois ao buscar denunciar o delito de discriminação encerra por ser substituído e com isso, perde a oportunidade. Mãos livres e boca fechada.

 

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Org./trad. Luís Afonso Heck. – 4 ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.

BAYMA, Fátima. Reflexões sobre a constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas no Brasil: referências internacionais e os desafios pós-julgamento das cotas. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40362012000200006. Acesso em 08 de mar. de 2016.

BEDIN, Edivar Antonio. Democracia. Justiça, sem Justiçamento!. Extraído do Site Edivar Bedin. Disponível em: http://www.edivar.com.br/?p=319. Acesso em 08 de mar. de 2016.

BERGMANN, B. In defense of affirmative action. New York: Basic Books, 1996.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em 06 de mar. de 2016.

_______. Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Decreto n° 65.810, de 10 de dezembro de 1969. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=94836. Acesso em 07 de mar. de 2016.

_______. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Lei n° 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7716.htm. Acesso em 08 de mar. de 2016.

_______. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Decreto n° 592, de 06 de julho de 1992. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em 06 de mar. de 2016.

_______. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Decreto n° 591, de 06 de julho de 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em 06 de mar. de 2016.

GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado, a.38 n. 151, p.129-152, jul/set 2001b.

______. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade. O Direito como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. Renovar, Rio de Janeiro, São Paulo, 2001.

HALBRITTER, Luciana de Oliveira Leal. O sistema de cotas raciais como ação afirmativa no direito brasileiro. Disponível em:
http://www.escolalivrededireito.com.br/artigos/o-sistema-de-cotas-raciais-como-acao-afirmativa-no-direito-brasileiro/. Acesso em 08 de mar. de 2016.

LEWANDOWSKI, R. Íntegra do voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF sobre cotas. Brasília, DF: STF, 2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2012.

MELLO, Marco Aurélio. Ótica constitucional: a igualdade e as ações afirmativas. In Tribunal Superior do Trabalho, Discriminação e Sistema Legal Brasileiro – Seminário Nacional. Brasília: TST, 2001.

MOREIRA, Gerliane Cabral. O princípio da igualdade nas ações afirmativas e a política de quotas. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3166. Acesso em 03 de mar. de 2016.

ONU, 1948. Declaração Universal de Direitos Humanos. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em 06 de mar. de 2016.

ONU, 1789. Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em 06 de mar. de 2016.

PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto de filosofia. São Paulo: Leya, 2012.

RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

WIKIPÉDIA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia:P%C3%A1gina_principal. Acesso em 06 de mar. de 2016.

SANTOS, Hélio. A busca de um caminho para o Brasil: A trilha do círculo vicioso. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001.

SOUZA NETO, C. P.;  FERES JÚNIOR, J. Ação afirmativa: normatividade e constitucionalidade. In: SARMENTO, D.; IKAWA, D.; PIOVESAN, F. Igualdade, direitos sociais e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

 



[1] Dados extraídos do Wikipédia.

[2] Dados extraídos do Wikipédia.

[3] Dados extraídos do Wikipédia.

[4] Dados extraídos do Wikipédia.

[5] Dados extraídos do Wikipédia.

[6] Ibidem.

[7][...] qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública. (Art. 1° da Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial).

[8] Coronel da 4ª Região de Polícia Militar localizada no Município de Chapecó, estado de Santa Catarina.

 



[1] Advogada; Pós-Graduada em Direito do Trabalho e Previdenciário; Autora do Blog Direito em Estudo; Autora do livro A Promoção dos Direitos Humanos Fundamentais Através da Polícia Militar. E-mail: linny.mendes@hotmail.com.

domingo, 2 de abril de 2017

Parte IV: A promoção dos Direitos Humanos Fundamentais através da Polícia Militar

UNIDADE IV
DESAFIO DA EDUCAÇÃO PARA A PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ATRAVÉS DA POLÍCIA MILITAR POR MEIO DO PROGRAMA EDHUCA: EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA ATIVA

4.0  Afirmativa Histórica da Educação
Há um limite na inteligência de cada ser, desencadeando na necessidade de comunicação entre os indivíduos como meio de trocar informação e aumentar o conhecimento. Historicamente, sabe-se que o diálogo foi reconhecido através de Sócrates, por meio da técnica de perguntar e responder (maiêutica), como meio de buscar a verdade, ou seja, os primeiros resquícios da educação surgiram por intermédio do diálogo.
A arte do diálogo permite a troca de informações e o confronto de ideias que arrebentam na necessidade de mergulhar na fonte do conhecimento, na busca insaciável por mais informação. Posterior a isto, emerge Platão que abre caminho para o ensino da ética na política através do diálogo, este visto como o “espaço à educação expresso pela relação intersubjetiva e estrutura do pensamento”, ao dialogar o indivíduo estará educando-se através do outro e educando-o, saciando-se através do conhecimento, como afirma Melo Neto (2011, p. 19).
O termo educação possui dupla concepção, entendendo-se como “desenvolvimento das possibilidades interiores do homem, onde o educador apenas as exteriorizava (nativismo), ou consideravam-na como conhecimento humano adquirido pela experiência (empirismo)” como define Muniz (2002 p. 7). A educação provém do grego paidagógen ou do latim educare, que se refere a algo inerente as relações humanas e sociais, ou seja, “um fenômeno de produção e apropriação da cultura”, conforme a percepção do referido autor (2011, p. 19). A educação pode operar-se de forma espontânea, ou através de meios reflexivos e sistemáticos, instante que irá ocorrer por meio de técnicas apropriadas visando o rendimento educacional. Como meio de compreender o aspecto educativo é que foi efetuada uma viagem histórica, buscando a afirmativa deste direito social fundamental.
Inicialmente, foram reconhecidos em Platão, os pilares da Paideia, que expressava a edificação da Arete, definida como capacidade de pensamento e reflexão sobre a virtude do indivíduo grego. Neste instante, a educação buscava caminhos para levar a virtude aos gregos (para os Homero, e para os Hesíodo)[1]. No século IV a.C. , a educação foi dominada pelos sofistas, que se baseavam na formação do espírito, possuía caráter individualista, atuando de duas maneiras, quais sejam, através da “transmissão de um saber que tenha dimensão enciclopédica geral, e por meio da formação do espírito em seus diversos campos”, esta dualidade permaneceu viva no núcleo educacional até a atualidade.
Neste momento histórico, Protágoras, sofista, alicerçado por Platão, apresentou a educação formal, utilizando em sua didática mais que a estrutura do entendimento ou da linguagem, mas a mais diversa totalidade de métodos (ensinando através da música, teatro, poesia, dialética e etc.), instigando o nascimento da educação política. Neste percurso o exercício da argumentação toma forma, conquistando adeptos entre os gregos, onde o diálogo apresenta um caminho para a argumentação e a construção de novas definições.
Na argumentação, a educação ocorria sempre que eram apresentados conceitos definidos, isto é, pré-sabidos, que passavam pelo questionamento do mestre por meio da ironia, instante em que a maiêutica entrava em ação através de questionamentos aos discípulos que davam luz à verdade (conhecimentos), distanciando-se do juízo de opinião, para abraçar o juízo crítico e racional, através da dialética, efetuando uma crítica contra tudo que estivesse pré-colocado (Estado, poesia, legislação e etc.), como recorda Melo Neto (2011, p. 27), de forma a assumir a dúvida e abandonar a certeza prévia. Sócrates pretendia questionar enquanto Protágoras buscava afirmar, desta maneira um método complementava o outro (2011, p. 29).
O diálogo é visto como uma forma de encantar e convencer. No entanto, “a educação, para o sofista, se confunde com o adestramento, voltado para iludir as naturezas fortes enquanto que promove o poder dos fracos. Esse adestramento se inicia tal qual animal, na infância”, atuando de forma opositora à filosofia da educação socrática, conforme expressa o autor (2011, p. 32).  Neste momento, a educação é utilizada como forma de controle e exercício de soberania, tornando-se um privilégio de alguns poucos indivíduos. A educação sofista, conforme destaca Muniz (2002, p.15) era considerada como um instrumento de poder, atuando de forma individualista e subjetivista, direcionada ao indivíduo, o qual detinha valor conforme o poder que possuía. No entanto, Sócrates, rompe com esta ideia, preocupando-se com o ser humano em seu aspecto grupal, de forma solidária (2002, p. 17).
Logo, “a procura do saber é o desafio para Platão e é, exatamente, na ausência do saber onde se encontra a grandeza socrática” (2011, p. 39). Todavia, neste momento o Estado toma para si a responsabilidade pela educação, passando, então, a nutrir e direcionar o homem por meio da mesma, atuando desde a infância, passando a edificar o próprio Estado em suas nuances, buscando readequar os cidadãos em sua conduta ética e moral, fazendo desta forma de ação o principal elemento da política.
Platão comparou o mundo sensível a uma caverna subterrânea, onde apenas são detentores do conhecimento aqueles que conseguem libertar-se das sombras da ignorância e procurar a luz do saber, soltando as algemas da ignorância, em troca de um mundo inteligível (de conhecimentos), no entanto, é um processo longo e doloroso, mas seus frutos são incomparáveis (2002, p. 18/19), pois faz com que o homem desperte “para o mundo das ideias”, conforme o esforço de cada um.
Já Aristóteles, interpretou a educação como fruto do Estado, enfatizando que cabia a este ente o seu controle, como forma de criar cidadãos nos moldes que lhe era conveniente, como destaca Muniz (2002, p. 21/22). Mais tarde, emergiu Rousseau (1712/1778), que buscou a valorização do ser humano em seu estado natural. Chegando a Habermas, consta-se a busca pelo alicerce da análise crítica, baseado na razão, buscando a técnica e a emancipação do homem, que se encontrava aprisionado pela forma educacional pré-estabelecida, visando libertar da ignorância e da inconsciência por meio da Escola de Frankfurt. Hebermas visa uma ação comunicativa, baseada no diálogo.

As críticas habermasianas se voltam à objetividade e à verdade do conhecimento, indicando que a razão instrumental positiva reduz o conceito de Razão a procedimentos metódicos e lógico-formais. Também, a razão positivista não é aplicada à moral e à prática, aspectos presentes na razão dialógico-comunicativa. (Melo Neto, 2011, p. 72).

A razão comunicativa, por sua vez, busca o consenso através do diálogo, instante em que a verdade será encontrada dentro do diálogo conforme o melhor argumento, rejeitando falsos determinismos, a mesma “resgata o diálogo exigido na esfera social da cultura”, questionando valores e normas, restabelecendo a razão[2] instrumental (que visa atender os interesses da classe dominante, aprisionando a sociedade em seus moldes), como expressa Melo Neto (2011, p. 70).
Habermas busca desenvolver o sentido investigativo dos cidadãos, construindo a Teoria Crítica, que visa transformar a razão instrumental, restabelecendo uma relação otimista com a esfera pública, onde as pessoas poderão decidir seu agir livremente, a qual tomaria forma por meio de um progresso técnico, desencadeando na emancipação social com relação às formas de dominação, suscitando nas pessoas seu raciocínio crítico no que tange às leis ou tradições que lhes são impostas, tencionando “a ação formulada como instrumental e como agir comunicativo”, a ação instrumental refere-se à forma de implantação da educação e o agir comunicativo refere-se ao entendimento adquirido (2011, p. 98).
Seguindo o percurso afirmativo, deparamo-nos com Paulo Freire que vê na educação a libertação humana, reconhecendo o valor da razão instrumental por suas técnicas e importância. Para o autor, o homem difere-se dos demais seres por sua capacidade de discernir e dialogar, posto que o indivíduo, não se encontra preso no tempo, ao contrário, ele se modifica, herda, incorpora, banha-se, temporaliza-se nele, isto é, atua criando e recriando integrando-se as condições que lhes são impostas e atua sobre as mesmas, objetivando seu bem-estar, dominando a história (tempo) e a cultura (espaço).
Freire desiste do método de domesticação, apostando na metodologia de conscientização, que se reporta a uma postura crítica, a qual não pode expressar-se através da força, pelo medo ou coerção, mas sim, por intermédio da “educação que proporcione a reflexão do seu próprio poder”, como destaca Melo Neto (2011, p. 107). A denominada consciência crítica possibilita a efetivação de uma educação dialógica e ativa, com vistas na promoção da responsabilidade social e política, materializando-se no despir de respostas prontas e vestindo-se de senso crítico, negando-se a transferir responsabilidades ou a aceitar posições quietistas.
Caminho onde o “o diálogo se torna a concretização do próprio exercício para a liberdade”, um diálogo que exprime mais que palavras, mas que externa ações, como interpreta o referido autor (2011, p. 108/109). Afinal, o diálogo compreende tanto o ponto de partida, quanto o ponto de chegada ao que se refere à promoção e recuperação da igualdade, promovendo a democratização popular, construindo a identidade do oprimido e posicionando-o munido pela espada da libertação da ignorância. Para Freire, a educação encontra-se impedida de transformar-se em silenciosa anuência da opressão, proclamando a necessidade da superação desta situação de exclusão instituída secularmente.
O autor abandona o método educacional individual para um solidário, promovendo a “construção de um ser humano transformador”, rompendo com os estigmas antigos, formando uma educação dialógica, problematizadora e libertadora. No entender do referido autor (apud MELO NETO, 2011, p. 114), a existência justamente por ser humana, não pode calar-se, muito menos nutrir-se de falsas palavras, mas sim, municiar-se de verdades transformadoras e agir em busca da concretização das mesmas, visto que, “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo”.
Exige-se então a alfabetização e a conscientização, como um exercício para a liberdade do oprimido, superando os novos valores. Neste autor, “a teoria e a prática pedagógicas da ação cultural voltam-se, essencialmente, para a questão da democracia”, buscando excluir as formas de opressão, dando dignidade aos seres humanos, e força para que os mesmos reconstruam sua existência (2011, p. 125).

[...] o diálogo (...) apresentando-se de forma maiêutico-socrática, por meio de uma pedagogia freireana que exercite a superação da opressão ou pela ação comunicacional habermasiana, pode iniciar o exercício de uma nova racionalidade, definida pela reflexão crítica sobre a realidade, visando à ação transformadora. (Melo Neto, 2011, p. 127).

Este desenvolvimento racional desencadeou no enraizamento de uma ciência crítica no solo da sociedade, findando na emancipação do cidadão, fixando-se na “integração a ciência social empírica e da hermenêutica”, (2011, p. 127) é desta maneira que o diálogo apresenta-se como elemento construtor da educação, contribuindo para a superação da opressão estatal, em um andar humano a caminho da liberdade.

4.2  Educação no viés de um Direito Fundamental: Um Enfoque aos Arts. 205 até 214 da Carta Cidadã de 1988
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ficou reconhecida como a Constituição Cidadã em função de que esculpe em letras douradas de suas páginas 250 artigos que embasam a mais ampla expressão de proteção aos direitos e garantias do cidadão já existentes, abraçando os indivíduos com seu manto protetivo, dando-lhes um escudo guardião das arbitrariedades e ilicitudes e uma espada da justiça para que possam promover seus direitos e garantias. Suas diretrizes se irradiam por todo o Estado, direcionando seus cidadãos através de sua luz, de forma a extraí-los das trevas da ignorância e da ilegalidade, edificando o Estado Democrático de Direito, sob o iluminar de sua proteção e sabedoria.
A legislação constitucional educacional brasileira emergiu somente na Constituição Imperial de 1824 e trouxe no art. 179, (composto por 35 incisos), n° 32 que a instrução primária seria gratuita a todos os cidadãos, porém, este direito apenas pertencia à letra do artigo, posto que na prática as minorias compreendidas pelos negros, índios e mulheres eram excluídos desta garantia, porém conforme afirmou Silva (apud MUNIZ, 2002, p. 80) a respectiva foi pioneira mundialmente em positivar os direitos educacionais do homem, o que demonstra sua preocupação com a justiça humana.
Em seguida, a Constituição de 1891, deu continuidade a legalização do ensino, trazendo, também a gratuidade da instrução, estabelecendo às constituições estaduais suas diretrizes, conforme se nota no art. 65, n° 2º. Adiante, a Carta Magna de 1934, elencou no art. 179 a educação como elemento para a formação da personalidade, determinando no art. 150 “a”, a gratuidade e a obrigatoriedade de frequência ao ensino primário, gravando diretrizes para a educação nacional. Já no Caderno de Leis de 1937, mesmo sendo ditatorial em sua forma e conteúdo, trouxe no artigo 130 a educação como sendo gratuita, solidária e obrigatória, bem como, estabeleceu no art. 125 o dever primordial dos pais em ministrá-las incumbindo ao Estado somente o dever de contribuir e complementar as deficiências da educação particular.
Em andamento, a Constituição de 1946, robusta através do artigo 166, o princípio da solidariedade no que tange ao direito educacional, introduzindo-o em seu âmago, e, proclamando pela primeira vez, o direito à vida, substituindo o antigo termo subsistência. Neste percurso, na Carta Magna de 1967, foi esculpido no artigo 168, caput, a educação de forma estruturada, instante em que os direitos econômicos e sociais foram divididos em dois títulos, sendo um sobre a ordem econômica e o outro sobre a educação, a família e a cultura, enfatizando o manto da solidariedade como envolvente do direito educacional. Já na Constituição de 1969, houve uma repressão à expressão constitucional da educação.
Neste andar, emergiu a Carta Cidadã de 1988, que trouxe um Capítulo para designar este direito (Capítulo III – arts. 205 ao 214), estabelecendo os objetivos gerais sobre o sistema educacional brasileiro, proclamando seus titulares, e, enfatizando a solidariedade como elemento norteador, definindo a família, à sociedade e ao Estado de forma conjunta sua promoção e incentivo. Descrevendo, também, no caput do artigo 5° e nos incisos do art. 6° a proteção do direito à educação.
No que reporta ao art. 205 da Constituição de 1988, Maliska (2013, p. 204) define que “falar em educação é, reconhecer o papel indispensável dos fatores sociais na formação do indivíduo”. Ademais, a educação é formada pela esfera intelectual e moral conjuntamente, afinal o conhecimento seria nulo, caso o indivíduo não fosse detentor de valores, pois conforme sabido, a mesma mão que escreveu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (ano de 1789), que marcou o reconhecimento dos direitos da pessoa humana, também, esculpiu as Leis Nazistas, além de que, sabe-se que o papel aceita tudo que lhe for colocado, porém, é a pessoa humana quem é possuidora de saber suficiente para decidir o que é benéfico e necessário para o convívio social.
Conforme o referido autor (2013, p. 204) a educação seria mais que uma formação, pois consistiria em uma “condição formadora necessária ao próprio desenvolvimento natural”, logo, a educação sob o prisma de direito de todos implica em mais que assegurar o desenvolvimento da leitura, da escrita ou do cálculo, por precisar edificar, os valores morais, as funções mentais e a aquisição do conhecimento necessário para exercer as funções da vida social. Convém salientar que é na sociedade que a educação é desenvolvida, portanto, seu papel é fundamental para o desenvolvimento deste direito, visto que, uma educação de qualidade deve considerar as especificidades da região onde a pessoa reside.
Ademais, com relação ao trabalho dos pais em educar os filhos, a Constituição grava em seu Caderno de Leis os arts. 205, 208 §3°, 227 e 229, proclamando o dever jurídico destes com a educação de seus filhos, coadunado com a participação estatal, evidenciando a importância da participação de todos no que reporta a promoção deste direito aos cidadãos, visto atuar no pleno desenvolvimento da pessoa de maneira a formar pessoas com autonomia intelectual e moral.

Segundo nos ensina Konrad Hesse, a democracia é ‘um assunto de cidadãos emancipados, informados, não de uma massa de ignorantes, apática, dirigida apenas por emoções e desejos irracionais que, por governantes bem intencionados ou mal intencionados, sobre a questão do seu próprio destino, é deixada na obscuridade’. Desta forma, são diversos os aspectos que envolvem o papel da Educação em um Estado democrático. Poder-se-ia dizer que a educação (i) é um instrumento permanente de aperfeiçoamento humanístico da sociedade; (ii) promove a autonomia do indivíduo; (iii) promove a visão (...) das pessoas. (Ela deve possuir a função de superar os preconceitos e ilicitudes sociais); (iv) promove o sentido de responsabilidade entre as pessoas; (v) promove a consciência de que viver em uma República não implica apenas desfrutar direitos, mas também compreende responsabilidades cívicas; (vi) promove a consciência pelo valor dos direitos individuais e sociais. (Maliska, 2013, p. 205).

Encontra expressão no art. 206 os princípios consagradores do direito educacional, tais como, os referentes à igualdade de acesso e permanência no ambiente escolar, o princípio da liberdade em apreender, pesquisar, ensinar, divulgar, pensar no que corresponde à arte e ao saber, sendo ao todo 08 princípios. No artigo 208 vêm escrito quais são os deveres estatais no que se refere à educação, sendo 07 estes deveres, incluindo o ensino fundamental obrigatório e gratuito. No art. 209 materializam-se as diretrizes do ensino privado, submetendo-o ao “cumprimento das normas gerais de educação nacional e a autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”.
O artigo 210 apregoa a necessidade de fixação de ensinos elementares para a educação fundamental, assegurando a igualdade na formação e a afirmação de valores artísticos, culturais, nacional e regional. Traz o artigo 211 a competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para a organização do regime de colaboração dos sistemas educacionais, composto por 4 parágrafos. O art. 212 traz o percentual de aplicação de impostos na área educacional de cada ente. No art. 213 esculpe-se o destino dos recursos públicos referentes às escolas públicas. Por fim, o art. 214 expressa a necessidade de estabelecer um plano nacional de educação, objetivando articular o sistema e definir suas diretrizes, estratégias, objetivos e metas que o materializam, como meio de garantir a manutenção e o desenvolvimento do ensino.

4.3  Explorando a Educação de maneira Estratégica para a Cidadania
O crescimento da violência tanto no meio urbano quanto rural, coadunado com a falta de ressocialização dos presídios, conjuntado pelo poder que o crime organizado tem detido, e as dificuldades que as instituições policiais encontraram para se adaptar às exigências sociais, emergentes da democratização, tem sido fator desencadeante de fortes preocupações sociais. Neste sentido:

A relação das polícias com a democracia tem sido ambígua, marcado pelo impasse entre a defesa da ordem e a defesa dos direitos dos cidadãos. Assim, por um lado, todos reconhecem que as polícias são organizações fundamentais para o funcionamento e para o ordenamento das sociedades contemporâneas, protegendo os cidadãos e garantindo-lhes o pleno uso de seus direitos; por outro lado, contudo, as polícias tem sido também o braço armado das forças sociais hegemônicas da defesa do seu status quo, o que no Brasil se traduziu na lógica do inimigo interno e no uso indiscriminado da força (Neves, 2002, p. 13/14).

No entanto, a redemocratização dos anos 80 e 90 modificaram este modelo policial, fazendo eclodir uma polícia em mutação para os direitos humanos, ocasionando uma aproximação entre as polícias e destas para com a sociedade, fato este, visível no Plano de Comando Militar de Santa Catarina que propõe o estabelecimento de uma polícia comunitária, pautada na proximidade e na materialidade de ações educacionais.
Cabe destaque o fato de que a Polícia Militar de 1988 e os Direitos Humanos andam de braços dados, formando uma aliança baseada na promoção destes direitos e na efetividade das ações da corporação. Neste enfoque, convém salientar que todas as pessoas são detentoras de direitos e deveres conforme preceitua a Carta Magna, no entanto, em alguns países estes direitos são mais respeitados que em outros, porém, não há justificativa para que estes direitos não sejam disponibilizados.
Além de que, conforme Dallari (2004, p. 7) todas as pessoas são iguais em direitos e deveres, e desta forma, nenhuma vale mais que a outra, ou possui um direito maior que o de seu semelhante. Porém, como são costumeiros, os grupos mais influentes procuram sobrepor seus valores e direitos, no entanto, isto é ilícito e pode ser freado através dos poderes legislativo, executivo e judiciário, é por isto, que o povo precisa demonstrar interesse nas decisões políticas, fiscalizando os atos públicos, para que os mesmos não venham a beneficiar apenas alguns poucos, visto que no modelo democrático de direito, o interesse público deve sobressair-se aos demais.
Neste andar, uma questão que aflige a sociedade é a promoção dos direitos humanos fundamentais, entre eles, a segurança pública e a cidadania. Neste enfoque, Adorno (2002, p. 11) destaca que a Polícia Militar, para conseguir suprir a demanda social, precisa constituir mais que o braço armado do Estado, visto que deve municiar-se, também, de sua força intelectual e com isto atuar, principalmente, preventivamente, através da proteção dos direitos humanos, posto que estes direitos e a segurança pública se incorporam, devido a sua relação de interconexão.
É por isto que este manuscrito visa demonstrar a efetividade da função policial na sociedade democrática, visando vencer este rótulo de que a promoção dos direitos humanos não condiz com o trabalho da Polícia Militar. Neste contexto, os direitos da pessoa humana são universais, ou seja, válidos em todos os Estados, embora possam variar de região para região quanto à enumeração, extensão, e quanto à forma de concretização, porquanto, estes direitos são indiferentes à nacionalidade e cidadania, pois são válidos para as pessoas enquanto seres humanos, de forma indistinta, como assegura Dallari (2004, p. 24/25).
Contudo, a universalização destes direitos não ocorre da mesma maneira que a globalização, visto que esta última está conectada com a ideia do lucro financeiro e desvinculada de qualquer compromisso com a materialização de direitos ou garantias humanas, conforme destaca Tosi (2002, p. 41). O processo de globalização efetua o caminho inverso que o dos direitos humanos, por preferir o retrocesso de direitos, ou seja, a intervenção mínima do Estado, abrangendo a pura defesa dos direitos da liberdade. Nesta trajetória, não há lugar para a defesa dos direitos sociais e de solidariedade, é por este motivo que novas e velhas desigualdades sociais e econômicas emergem e coadunam-se em detrimento da efetivação dos preceitos da Carta Magna e dos direitos humanos.
Aqui permeia a dificuldade encontrada para semear estes direitos, devido ao fato de não trazerem lucro pessoal, ao contrário, posto que os mesmos libertam os seres humanos, e conscientiza-os de seu valor, munindo-os com meios para se desprender das arbitrariedades e ilicitudes que lhe são impostas, excluindo e marginalizando-os no núcleo social à mercê da boa vontade do Estado e de seus representantes que, controlados pelo sistema capitalista, objetivam mais o lucro, apresentando políticas públicas superficiais, apenas como marketing para auferir votos e manter seu cargo público, do que, realmente libertar e proteger estes cidadãos desguarnecidos de direito e justiça.
Conforme foi apresentando, até então, é a educação que traz a alforria destes cidadãos marginalizados, extraindo-lhes o véu da ignorância e arrebentando suas algemas, liberando-os dos açoites das injustiças e das amarras dos troncos e cepos das arbitrariedades provenientes de todos os lados, assinando sua Carta da Liberdade, armando-os com a espada do conhecimento e com o escudo dos direitos e garantias, que mais que belas palavras, são necessidades que precisam ser conhecidas, para serem buscadas e efetivadas. Afinal, como pode o homem buscar algo que nem sequer sabe existir?
Tosi (2002, p. 45) chega a afirmar que “a questão dos direitos humanos (...), funciona como uma ideia reguladora, um horizonte que nunca poderá ser alcançado porque está sempre mais além, mas sem o qual, não saberíamos sequer para onde ir”. Porém, mais que utopia, estes direitos são realidade, pois, encontram-se expressos no Caderno de Leis universais que compreendem os direitos humanos, e partindo do papel para a materialização social, precisa apenas motivação, conhecimento e aplicação.
De acordo com Freitas (2002, p. 50) a cidadania[3] coexiste com a desigualdade, visto que os direitos são descritos como natos e pertencentes ao ser humano, porém, “nas relações de poder e exploração, não é assegurado o seu exercício ao cidadão”, uma vez que não abrangem lucro financeiro. Existe uma dicotomia entre a positivação destes direitos e sua efetividade, pois, embora sejam assegurados, não são respeitados, como é perceptível nas desigualdades sociais, que resultam em uma democracia sem cidadania.
Para Warren (apud Freitas, 2002, p. 51) não há como edificar a democracia nestas condições, pois as ações estão contraditórias, visto que, se a democracia apoiar a existência destas desigualdades, a mesma constituirá um modelo de sociedade para excluídos, e sua aplicação será uma farsa, pois estaria afirmando uma “cultura política de exclusão social, de violência, de desidentificação social”. Constata-se na atualidade uma crise na cidadania, onde os indivíduos desconhecem seus direitos, dificultando ainda mais sua promoção, que a primeira vista, já não possuem tantos adeptos a promovê-los.

[...] a simples situação de miséria, de discriminação ou mesmo de exploração não produz automaticamente este reconhecimento. E mais ainda, como reconhecer o direito de lutar por um direito? Neste sentido é fundamental a existência de um fator subjetivo, ou seja, o reconhecimento de sua dignidade humana, que sempre foi solapada nas classes subalternas e tem suas raízes no sistema escravocrata e colonial. Warren (apud Freitas, 2002, p. 51).

Em decorrência da necessidade de efetivar estes direitos, e afirmar a cidadania, certifica-se, a obrigação de educar as pessoas para se descobrirem como sujeitos de direitos, isto é, é preciso conhecer para buscar. Nada obstante, a Constituição no Título VIII, Capítulo III, apregoa a educação como direito de todos e dever estatal, familiar e social, cuja finalidade compreende em mais que efetuar o pleno desenvolvimento da pessoa, mas prepará-la para o exercício da cidadania.
Depreende-se do exposto, que o problema com relação aos direitos humanos, já não é mais o de seu fundamento, mas sim o de garanti-los à sociedade e o maior entrave para sua efetividade compreendem a falta de conhecimento e a falta de reivindicação. A transposição deste modelo jurídico, expresso por uma constituição de papel, contem apenas normas escritas e não detém efetividade, implica na necessidade de orientação educacional interdisciplinar, priorizando as relações escolares, comunitárias e sociais.

O termo cidadania, como mencionamos anteriormente, é muito vago. Quando se tenta defini-la, surgem as mais variadas explicações: ‘[...] é quando o cidadão cumpre seus deveres e conquista seus direitos.’; ou então: ‘[...] é atuar dentro de uma sociedade, ter direitos e deveres, e fazer uso destes.’ Ainda, aparece a possibilidade de ‘desfrutar da condição de ser brasileiro’, condição essa relacionada com a própria questão da nacionalidade. Deve-se considerar, também, que a questão dos direitos humanos e da cidadania é pouco abordada na educação em geral, e mesmo nos cursos jurídicos, é abordada de forma superficial.

Neste enfoque, o conceito de cidadania, conforme Ferreira (apud FREITAS, 2002, p. 55) compreende os direitos naturais, a liberdade do pensamento, de religião, e a igualdade frente à lei, neste sentido, a mesma origina-se dos “direitos formais de liberdade”, desencadeando hodiernamente nos direitos civis, porém, compreende um processo em desenvolvimento.
Assim, conforme o respectivo autor (2002, p. 57) os autores que identificam a cidadania com a nacionalidade, preocupam-se, simplesmente, com a questão da aquisição ou perda da nacionalidade. Já os doutrinadores que a diferem da mesma, colocam-na no somatório com a nacionalidade, “mais os direitos políticos de votar e ser votado”. Destarte, para Andrade (apud FREITAS, 2002, p. 57) “a cidadania, genericamente, é, pois, um vínculo jurídico que liga o cidadão ao Estado, delimitando seu círculo de capacidade: o conjunto de direitos (políticos) e obrigações perante o Estado”, quando um indivíduo não pertence a nenhum Estado, encontra obstáculo para reivindicar direitos, pois se torna um sujeito apátrida, não detendo por isso, nenhuma ordem jurídica.
Desta forma o conceito de cidadania não se reduz a “vinculação à nacionalidade ou a participação político-eleitoral dos indivíduos na sociedade, pois o discurso da cidadania se materializa, democraticamente, quando enunciado pelos sujeitos sociais e políticos, visando erigi-lo em espaço público reivindicatório de direitos”, como destaca Freitas (2002, p. 60).  A cidadania consiste, então, no poder de acesso ao espaço público. Em outro sentido, a cultura do Brasil efetivou-se por meio da colonização, refletindo os muitos anos de exploração que o país vivenciou, a qual perdura até os dias atuais, se vista sob o ângulo dos abusos existentes, posto que sua formação histórica apenas reproduziu as relações sociais autoritárias e conservadoras dos colonizadores, desta feita, Freitas (2002, p. 63) destaca que:

[...] a luta pela construção de uma cidadania vai ao encontro dos problemas concretos que o ser humano vive em áreas referentes à subsistência, à saúde, à moradia, à educação, ao trabalho, à segurança, à dignidade humana, entre outras. Como construção de direitos que, ‘essa cidadania coletiva e orgânica das massas pressupõe a conquista de um direito essencial (que deve ser inalienável) pelos movimentos populares: o direito de conquistar (e gerir) direitos’ (Scherer-Warren, 1993, p. 55). A conquista desse direito se dá com o reconhecimento de que é sujeito de direitos.

Posto isto, enfatiza-se, que a cidadania da qual a sociedade precisa é aquela com capacidade de dar competência aos seres humanos para ser e fazer-se sujeito de direitos, organizando-se coletiva e solidariamente na procura pela emancipação humana. Visto que, a situação a que o povo está submetido, na verdade compreende o oposto da cidadania (pobreza política, falta de conhecimento jurídico, falta de organização social). Através do exercício da cidadania, será possível organizar a sociedade politicamente, engajando-se na reivindicação de direitos, promovendo o bem-estar coletivo e a efetividade dos direitos humanos.
Destarte, acima de um vínculo jurídico, a mesma compreende a luta pela positivação e materialização dos direitos, nascida no âmago da liberdade individual, buscando emancipar os indivíduos, como enfatiza Freitas (2002, p. 64/65). Ter conhecimento sobre seus direitos não é suficiente para poder promovê-los, é preciso lutar para efetivar os direitos já positivados e os novos direitos que emergem das relações sociais, neste enfoque, evidencia-se que todas as pessoas são portadoras de direitos humanos, mas para auferir a cidadania efetiva, é preciso ser detentor de capacidade para exercitar os direitos expressos nas normas vigentes.

Nesse sentido, a cidadania é a condição de reclamação, de reivindicação de direitos e do exercício desses direitos. A cidadania é o acesso ao espaço público: em primeiro lugar, ela é o acesso jurídico e político; em segundo, ela é a participação no processo de construção desse espaço público. O acesso jurídico confere ao sujeito o direito de participar da comunidade conferindo-lhe o status formal de cidadania. Porém, não basta o sujeito ter a nacionalidade, pois ela não garante a efetividade dos direitos humanos. (Freitas, 2002, p. 66).

Diante disto, é preciso investir na educação para abrir a visão, principalmente das classes desfavorecidas, que se encontram, também, cegas pelo capitalismo e pela vontade de consumir, visto que os excluídos não buscam mais a efetividade de um direito constitucional, mas visam, simplesmente, o direito de consumir, fazendo com que este direito substitua os direitos civis e políticos, limitando a organização política, retrocedendo ao invés de avançar democraticamente, conforme o entendimento de Freitas (2002, p. 74).
É preciso redefinir a ideia de direitos, partindo da concepção da reivindicação de um direito a ter direitos, cuja qual não se limita as conquistas legais ou ao acesso dos direitos positivados, mas inclui a criação de novos direitos que afloram das lutas sociais, buscando uma cidadania que constitua uma estratégia para os não cidadãos, para os marginalizados, e, excluídos, como entende Dagnino (apud FREITAS, 2002, p. 75), demandando a criação de instituições que ensinem, expressem e auxiliem na materialização destes direitos.
Deste modo, Freitas (2002, p. 77) distingue “a cidadania passiva – aquela que é outorgada pelo Estado, com a ideia moral da tutela e do favor – da cidadania ativa, que institui o cidadão como portador de direitos e de deveres, mas essencialmente criador de direitos de abrir espaço de participação” e de emancipação, desencadeando no fim da desigualdade e no “fim da divisão dos brasileiros em castas separadas pela educação, pela renda, pela cor”, (2002, p. 78) edificando no solo brasileiro um Brasil Democrático, nos moldes que a Constituição Federal lhes promulga, colocando a pessoa humana, por consistir o bem mais valioso da humanidade, acima de qualquer outro valor, conforme o entendimento de Dallari (2004, p. 09). Nas palavras do autor (2004, p. 13), “como todas as pessoas são iguais – uma não vale mais do que a outra, uma não vale menos do que a outra” – e a todos deve ser assegurada a possibilidade de usufruir de todos os direitos humanos e fundamentais.
O maior valor de um Estado é o da pessoa humana, visto que o mesmo se edifica através do povo. Desta forma, como fundamento do Estado Democrático de Direito (Art. 1, III da CF) existe a dignidade da pessoa humana, a qual precisa ser respeitada sob pena de negação aos preceitos da Carta Magna, além de que, por compreenderem seres frágeis, as pessoas possuem um dever de solidariedade para com seu semelhante, dever este que até os animais possuem, por isto vivem em matilhas (para defenderem-se e garantirem sua sobrevivência), desta maneira, no instante em que houver respeito pela individualidade de cada ser, e solidariedade no que tange as suas necessidades, as injustiças sociais serão dirimidas e a humanidade poderá usufruir o direito da terceira geração que é a paz.
Os direitos humanos foram manchados pela dor, sangue e sofrimento de muitos anos de guerras, no entanto, já proporcionaram diversas vitórias, contudo, o caminho até sua completa efetividade é longo e árduo, pois precisará vencer o entendimento de que estes direitos são privilégios das classes favorecidas. Neste enfoque, parece contraditório afirmar que as pessoas possuem a obrigação de exercerem seus direitos, no entanto, devido à natureza associativa dos indivíduos e a solidariedade inerente da condição humana, bem como, a fraqueza dos grupos sociais isolados, no instante em que forem enfrentar o Estado ou grupos sociais poderosos, é imperioso que todo o povo participe nas atividades sociais para igualar o poder de coerção, como define Dallari (2004, p. 25), pois a vida em sociedade é um imperativo da natureza humana.
Por decorrência, como meio de organizar esta sociedade é que existem as regras, as quais precisam ser respeitadas para garantir uma convivência saudável, para isto é preciso que todos conheçam seus direitos e deveres e os respeitem. Do exposto, Dallari (2004, p. 30) define que um Estado Democrático ergue-se sobre três bases:

[...] o respeito à liberdade, reconhecida como direito fundamental da pessoa humana; o reconhecimento da igualdade como outro direito humano fundamental condicionante da organização social; a supremacia da vontade do povo, que deve ter a possibilidade de decidir, diretamente ou por meio de representantes eleitos, sobre todos os assuntos importantes ou de seu interesse.

São diversos os direitos humanos fundamentais, entre eles, pode ser destacado, o direito à vida, que é o bem primordial da pessoa humana, visto que dela decorrem todos os demais direitos. Porém, garantir o direito à vida, não compreende simplesmente proibir que a pessoa sucumba, pois, exige o respeito pela integridade do indivíduo e possibilidade de uma existência digna, visto que, “nenhuma vida humana é diferente da outra”, por isto, nenhuma vida vale mais que a outra, como enfatiza Dallari (2004, p. 33). Porém, muitos atentados ocorrem diariamente na sociedade, impulsionados pela ambição desmedida de algumas pessoas, que limitam e extraem a vida dos marginalizados objetivando o simples lucro financeiro, pode ser utilizado como exemplo, o caso da poluição das grandes indústrias e o uso de venenos e substâncias tóxicas na agricultura.
Tem-se também a situação de pobreza extrema, na qual subsistem milhões de pessoas, morrendo de fome, cede e frio paulatinamente, nas ruas da cidade sob a luz da Constituição e o olhar de seus semelhantes, pessoas desassistidas de um mínimo de saúde, de alimento e de condições para sobreviver. O mesmo ocorre com as pessoas que são obrigadas a trabalharem em ambientes perigosos ou prejudiciais à saúde, que pelo benefício de um mínimo de acréscimo no salário, vendem suas vidas e sua dignidade.
Desta feita, conforme Dallari (2004, p. 36) “o respeito à vida de uma pessoa não significa apenas não matar essa pessoa com violência, mas também dar a ela a garantia de que todas as suas necessidades fundamentais serão atendidas”, é somente isso que a Carta Cidadã impõe aos seus cidadãos ao destacar que a vida que ela garante, precisa ser vivida com dignidade. Todas as pessoas possuem o direito ao respeito por suas vidas, no sentido mais amplo possível.
Assim como, “todo o ser humano tem o direito de ser reconhecido e tratado como pessoa”. Este direito deixa de ser respeitado quando o indivíduo age para com seu semelhante com violência de qualquer espécie, forçando-o a viver em situações degradantes, humilhantes ou discriminantes, como afirma Dallari (2004, p. 37), “reconhecer e tratar alguém como pessoa é respeitar sua vida, mas exige que, também, seja respeitada a dignidade, própria de todos os seres humanos”.
No artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 1948) esculpe-se o direito à igualdade entre as pessoas, no entanto, deste direito de igualdade e liberdade emerge a denominada falsa liberdade, ou seja, os excessos que alguns indivíduos cometem sob a desculpa de que são livres e podem tudo que desejarem, além de que o autor (2004, p. 44) enfatiza que é errado afirmar que a liberdade de uma pessoa encerra-se ao começar a liberdade do outro cidadão, visto que o direito da liberdade é exercido de forma conjunta, e a liberdade de cada pessoa encontra-se “entrelaçada com a dos demais seres humanos”, logo, ao afirmar um direito é preciso que o Estado garanta meios para que este direito seja usufruído.
Ao falar em usufruir direitos, retorna-se ao ponto inicial deste trabalho que embasa a necessidade social por educação, visto que, conforme o exposto, não há como exigir algo que não se conheça. Neste aspecto, municiada através da inteligência é que a Polícia Militar conscientizou-se que agir preventivamente, produz mais resultados que atuar repressivamente e para isto, buscou trabalhar através da educação, em uma relação de proximidade e respeito mútuo para com a comunidade.

4.4  A Promoção da Educação em Direitos Humanos através da Polícia Militar por meio do programa EDHUCA: Educação em Direitos Humanos e Cidadania Ativa
A Polícia Militar abraçou a Carta Política de 1988, em seu inteiro teor, passando a orientar o seu agir com base nos direitos humanos fundamentais, trabalhando em proximidade dos cidadãos, buscando a efetividade dos preceitos esculpidos no ordenamento jurídico.
Intelectualizada, esta instituição procurou agir preventivamente, e encontrou a educação como medida para tanto, atuando, sobre a criança com a personalidade ainda em formação, fato este que permite maior aceitação do conteúdo ministrado, aferindo maiores resultados em sua socialização, construindo uma sociedade pautada na legalidade e no conhecimento de seus direitos e deveres como pessoa humana. Sob este enfoque o TC Julio Cesar Pozzo da Fonseca, criou no 15º Batalhão de Polícia Militar do município de Caçador/SC, o projeto EDHUCA: Educação em Direitos Humanos e Cidadania Ativa, o qual se dirige ao público infanto-juvenil do 7° ao 3° ano do ensino fundamental e médio.
O programa visa instruir os alunos, professores, pais e demais cidadãos ao conhecimento dos direitos humanos fundamentais, buscando a melhoria do convívio social e a diminuição nas taxas de violência, para que estes passem a atuar como multiplicadores dos valores humanos, no intuito de originar uma cultura promotora do respeito e defesa destes direitos. Pretende-se que os educadores sejam instruídos, permanentemente, por meio de estudos e pesquisas de campo, as quais serão repassadas aos discípulos, para que possam aferir conhecimentos teóricos e práticos, concedendo-lhes capacidade suficiente para solucionar as problemáticas apresentadas a eles.
As atividades práticas serviriam como um processo de capacitação para a conscientização e prática dos alunos, no que tange ao agir político e legalmente correto, onde se pretende ofertar oficinas pedagógicas, exposições dialogadas, trabalhos de campo e manifestações artísticas em geral, ofertando a maior gama possível de conhecimento a estes alunos, possibilitando a sua total liberdade de agir frente à busca e efetivação de seus direitos. A intenção é demonstrar a realidade social para estes jovens, e com isto, ensinar-lhes os direitos e garantias protetivos, munindo-lhes de mecanismos para solucionar as problemáticas, transmitindo-lhes, além de conhecimento jurídico, valores sociais e morais, desenvolvendo seu raciocínio lógico.
O curso objetiva dividir-se em cinco modalidades, onde inicialmente pretender-se-ia repassar capacitação aos professores destes alunos, em segundo instante o público alvo seriam os alunos do 7° ao 8° ano letivo, e depois do 9° ao 1° ano, e, por fim, do 2° ao 3° ano letivo, atuando gradual e periodicamente. De modo geral, o projeto visa oferecer estes conhecimentos a todos os públicos, conforme o alcance de suas possibilidades, posto que, o objetivo é abrir o mundo jurídico para o povo, para que este lhe dê efetividade. O projeto procura estabelecer uma aproximação entre a polícia e a comunidade escolar, comunitária e familiar, envolvendo a participação do máximo possível de pessoas, posto que, a transmissão de conhecimento embasaria um método para transformar a realidade esmagadora que vigora em terrae brasilis, manchando de ilicitudes a bandeira nacional.
É incabível que em um Estado Democrático de Direito ainda existam pessoas que desconheçam as leis e garantias que lhe assistem, sendo ainda mais intolerante que a prática de arbitrariedades e ilicitudes ocorra à luz do dia, como realmente ocorre, é preciso clarificar as pessoas quanto o seu valor, é necessário conscientizar a humanidade que a luz que irradia da Constituição ilumina a todos os cidadãos nacionais, indistintamente, como define a letra do caput do art. 5°. A busca pelo crescimento e lucro a qualquer custo, tem destruído a humanidade nos corações das pessoas e com isto, ceifado milhões de vidas, indiscriminadamente, pessoas “sem face e sem nome”, que morrem nas calçadas, às margens da sociedade, cegos pela sombra da ignorância de seus direitos, em negação aos fundamentos desta República:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Grifos da autora).

Tais palavras aparentam letra morta no Caderno Constitucional, a um passo de pertencerem ao cemitério de leis, pois, não é notável a efetividade destas expressões, que mais que declarações são diretrizes que fundamentam a ordem estatal. É público que milhares de pessoas sucumbem devido à pobreza e a marginalização ocasionada pelas desigualdades sociais. É preciso que a população esteja consciente disto, e que passe a buscar a efetividade destas leis, promovendo e respeitando-as. Os cidadãos reclamam por educação para poderem, então, edificar o Estado que a Carta Cidadã deseja, é necessário descortiná-los de seus direitos e de sua condição de pessoa humana que a vitimização constante lhes extraiu.
É imensurável o tempo em que as igrejas e as leis apregoam a igualdade entre os seres humanos, contudo, estas afirmações nunca se edificaram no solo nacional, ou mesmo internacional, como a própria história demonstra, como destaca Dallari (2004, p. 46), desta maneira, “quando se diz que todos os seres humanos nascem iguais, o que se está afirmando é que nenhum nasce melhor do que o outro”, porém, a sociedade age de maneira desigual, oportunizando mais a uns que a outros, por isso, o imperativo que a Polícia Militar verificou de levar informação e conhecimento, principalmente ao povo desfavorecido, como forma de armar a sociedade contra as injustiças.
A desigualdade se legalizou de tal forma, que possui a denominação de globalização, a qual busca “aumentar a submissão dos países menos desenvolvidos e eliminar direitos dos trabalhadores, para assim, ganharem mais dinheiro, indiferente ao aumento das injustiças”. É isto que o programa EDHUCA, visa mostrar, é para responder a estes tipos de situações que o mesmo pretende preparar os jovens. Uma das mais graves consequências da globalização, ocasionada pela Era Robótica, foi o alto índice de desemprego, visto que a mão-de-obra humana vem sendo substituída pela maquinaria, que é mais rápida e econômica, agravando as desigualdades e injustiças, desguarnecendo os cidadãos.
Afinal, não há motivos que justifiquem, por exemplo, que a educação privada seja melhor que a educação pública, ou que a saúde privada seja melhor que a pública, se os profissionais possuem as mesmas formações e capacidades. É por isto que o programa EDHUCA pretende abrir a capacidade de raciocínio lógico da sociedade, construindo uma cultura de seres pensantes e atuantes na luta pela efetividade de seus direitos.



[1] Homero e Hesíodo, poetas gregos, que viveram entre os séculos VIII e VII a.C. e marcaram a educação e a formação humana, grega e ocidental.
[2] Ação referenciada em cálculos, com adequação dos meios a um determinado fim.
[3] O termo cidadania é vago, podendo ter várias interpretações conforme o interesse. Por exemplo, de acordo com a cultura jurídica dominante, pode ser vista meramente como um atributo concedido pelo Estado ao indivíduo social (nacionalidade). Considera-se, porém, que a cidadania é mais que a simples equivalência a nacionalidade, que o cidadão formal pode não ter conhecimento de seus direitos, e o conhecimento de que é sujeito de direitos é condição para o exercício da cidadania. Mas, nesse sentido, apenas ter conhecimento não é suficiente. É necessário lutar tanto pela efetividade dos direitos listados na norma constitucional quanto por novos direitos. (Freitas, 2002, p. 52).