quarta-feira, 29 de junho de 2022

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: NEGAÇÃO DA PRISÃO PERPÉTUA VERSUS IMPRESCRITIBILIDADE DO DELITO DE RACISMO


1.      INTRODUÇÃO

Este estudo circunda as diretrizes constitucionais acerca das cláusulas pétreas, em esboço do que são e para que se prestam no solo nacional e até internacional.

Diante disso, chega-se a questão de: sob a vigência de um Estado Democrático de Direito em que a negação à prisão perpétua é direito fundamental e irrenunciável e de outro lado tem-se o racismo como delito imprescritível, e da mesma forma, direito fundamental e irrenunciável, em que isto influência e qual a necessidade de estudo sobre a temática?

A questão em comento refere-se ao fato de que todo o crime possui um tempo para ser levado a conhecimento das autoridades competentes com vistas a solucioná-lo, no entanto, o racismo se encontraria fora desta questão e por isso, poderia ser levantado a qualquer tempo, o que ocasionaria um possível desgaste jurídico e insegurança social.

Para entendimento do tema, discorre-se acerca da evolução do estudo, no transcorrer do tempo, sobre a criminalidade, instante em que autor versus vítima ganham enfoque importante.

Esmiuçando a casuídica de cláusula pétrea e em que a própria influência na questão de negação à prisão perpétua – vez que encontra-se expressa em seu núcleo-, após faz referência ao estudo sobre o delito de racismo, sob o enfoque de o mesmo constituir um delito de pele, ou seja, um delito que não escolhe cor, mas sim, sentimentalismo e até mesmo, danosidade psicológica para consumar-se na pessoa que é seu alvo.

Após essas considerações, discorre-se, então sobre a questão de possível colisão de direitos e garantias fundamentais e perigo de entrar-se em lacuna nas diretrizes acerca da questão de negação à prisão perpétua enquanto precursora de uma imprescritibilidade do delito de racismo?

 

2.      CLÁUSULA PÉTREA – NEGAÇÃO À PRISÃO PERPÉTUA

Por cláusulas pétreas se subentende obstáculos instransponíveis mesmo em uma reforma ou mutação da constituição que gere determinado estado de direito, as mesmas só podem ser abdicadas através do abandono da Magna Charta vigente e elaboração de outra, ocasionando a substituição do ordenamento jurídico.

Sua função é estabilizar e engessar o ordenamento jurídico de maneira a garantir segurança jurídica aos seus adeptos. Neste sentido Thomas Jefferson (apud SANT’ANA PEDRA, 2005, pág. 331) indaga sobre a questão de uma geração de homens, através das cláusulas pétreas, poder vincular outras gerações com base em suas necessidades sociais, já que estas são imutáveis. Diante disto, ele fala “nenhuma constituição pode conter a vida ou parar o vento com as mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos”.

Em sua concepção nenhum indivíduo pode sobrepor sua vontade a outro, por tanto, uma geração também estaria impedida de impor-se sobre as próximas. Teme-se que este posicionamento absoluto possa prestar-se como obstáculo para a concretização de novos direitos no entendimento de Bobbio (apud SANT’ANA PEDRA, 2005, pág. 333) para o autor “O fundamento absoluto não é apenas uma ilusão; em alguns casos é também um pretexto para defender posições conservadoras”. Tem-se o entendimento de que estes preceitos arraigados no solo pátrio possam desferir um golpe silencioso sobre as novas gerações, ocasionando um engessamento em ideais ultrapassados e convicções desnecessárias.

Neste desenvolvimento os limites expressos na Constituição Federal (art. 60, §4º) compreendem o cerne material da constituição, com identidade própria que identifica valores indisponíveis da sociedade, sua função embasa a preservação destes elementos e desta maneira preserva a permanência e estabilidade da própria.

Conforme Sarlet e Brandão (2014, pág. 1129) uma tese defende que esta concepção dogmática compreende “o governo dos mortos sobre os vivos’ o que é incompatível com o poder de autodeterminação da geração atual”. Neste entendimento a busca por modificação do núcleo constitucional poderia ocasionar revolta e retorno ao caminho da revolução, com vistas ao poder originário de elaborar novos limites e compreensões, ocasionando, então, prejuízos a segurança jurídica e estabilidade das instituições políticas.

Porém, depreende-se de sua existência o fato de que, o povo que assumiu compromisso constitucional, decidindo sobrepor valores que considera oportunos e indispensáveis a vida social e estrutura básica do Estado, “com vistas a afastá-los do dia-a-dia da política, pois, consciente de suas fraquezas, teme por suprimi-los no futuro em benefícios de interesses menores ou de vontades fugazes” elabora a sua identidade social por meio das cláusulas pétreas.

Adiante, embasa o rol de cláusulas pétreas o art. 5 da CF/88, nisto encontra-se no XLVII, alínea b a negação à prisão da caráter perpétuo. Conforme Carvalho (2014, pág. 409) a pena de morte foi executada no Brasil pela última vez em 1855 e está vigente para os casos de guerra declarada, reforçando a ideia entra a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos através do Decreto nº 678 que define uma proibição ao retrocesso, dizendo que, aquele que não é adepto a pena de morte não pode retornar ao status quo ante; aboliu não retorna a viger (art. 4, 3).

No Brasil o princípio da humanidade, (art. 1º, inc. III da CF/88) reforça a ideia por meio do apoio à dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Neste caminho, adentra-se a seara em que a aprovação do Decreto 4.388/02, que institui o Estatuto de Roma traz a baila discussões como ‘(Art. 29) imprescritibilidade dos delitos’ e ‘(art. 77) negação à prisão perpétua, porém, tal discussão é silenciada através da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, por meio do Parecer n. 442/02, com base no fundamento de que “o Brasil propugnará pela formação de um Tribunal internacional dos Direitos Humanos”.

 Porém, a questão da perpetuidade da prisão restou em aberto. Carvalho (2014, pág. 109) assenta que a base para as sanções penais brasileiras compreende o respeito a princípios como da humanidade (art. 5º, XLVII).

Neste instante, insere dizer que em conformidade com os princípios da humanidade e da dignidade da pessoa humana, e em razão a negação à prisão perpétua estar elencada como cláusula pétrea requer entendimento de que sua vigência em terra nacional é inviável e injustificável. No entanto, este Decreto não passou pelo quórum de aprovação de emenda à Constituição o que o coloca em nível inferior as suas diretrizes, estando, por tanto, conforme sua expressão (art. 60, IV) impedidos de decretar prisão perpétua em solo nacional, mesmo que a aderência a este decreto se dê após a promulgação da Charta Magna (05 de outubro de 1988).

 

3.      RACISMO – UM DELITO DE PELE

Tanto como um sucesso se repete na vida particular constata-se que o que cai ao ouvido e por si mesmo adentra até a consciência feito uma espécie de sonho, torna por direcionar a vida desta pessoa, vez que Nietzsche acredita que a consciência do mundo está em repetir-se – retornar até um momento atrás-, quer-se que o mundo do direito penal adentre-se a está mesma consciência, feito um espelho côncavo que devolve o reflexo ao que se vê nele.

Este seria o finalismo da dogmática do direito penal, visando manter as estruturas existentes, por meio de uma força de atração e tentação irresistível em conformidade com o pensamento de Gunther Jakobs (apud SCHUNEMANN, 2010, pág. 57/58). Neste enfoque, a sociedade baseia a validade das normas de acordo com expectativas de comportamento social, desta maneira (pensamento teleológico) estar-se-ia efetuando uma prevenção geral positiva por via do reconhecimento da norma em uma justificação utilitária, por intermédio de estímulos psicológicos.

Logo após, Jakobs abandona o pensamento teleológico, adentrando-se no entendimento de Hegel, quando passa a buscar que a pena tem como intuito perseguir um fim de influenciar o comportamento social, diante disso “y, em lugar de ello, legitima la pena sólo através da necessidad de marginalizar la afirmación del autor (objetivada em el hecho) de que la norma no vale, através de uma contra-afirmación objetivizada em la pena” (SCHUNEMANN, 2010, pág. 61).

Dá-se a esta teoria o nome de anti-empirista, diante dela este autor se despede de buscar uma ação preventiva e se joga na teoria utilitarista teleológica em apoio ao neoidealismo de Ernest Amadeus Wolff, Kohler e seus discípulos. No entanto, Schunemann, constata um erro nesta ideia vez que, para o referido autor não é possível sanar através de pena todos os efeitos do ato delitivo, pois, este entendimento apenas confere veracidade a confusão existente em torno de medir a categoria de norma jurídica penal com relação as suas consequências, e ainda, apresenta-se como uma referência, mesmo que tímida as leis de talião, o que apenas abre caminho para condenados rumo a porta do cárcere, em espécie de portar a chave e apenas esperar que o delito se faça presente.

Este entendimento, encerra por fortalecer esta espécie de círculo vicioso que acomete a sociedade – delito versus sanção. Seu equívoco estaria no fato de que “el no parte de propuestas dogmáticas para llegar a la pena, sino que su sistema de premissas y resultadoses al revés: él parte de la premissa de que la pena no tiene um fin (sino que es en sí misma el alcance de um fin) para llegar as consequências dogmático-penales”. Porém, este intuito não pode ser alcançado sem que ocorra a reduccion médio-fin desde seu fim, esta técnica despe-se de analisar as consequências da pena, em razão de que a justiça não deve ter como base a sua mera existência para desempenhar um sentido de credo e controle social.

Neste pensamento a separação que visa dividir a pessoa do indivíduo, com fundamento em manifestações externas de um lado e o inteligível do outro: separar o sujeito empírico do transcendental. Desta maneira não está ao alcance do sujeito impedir um acontecimento, apenas ele é quem detém competência para o determinado fim, desta maneira questões como culpabilidade, causalidade, poder-fazer, capacidade e outros perdem seu caráter jurídico e não farão mais que refletir níveis de competência delituosa de um indivíduo.

Em conformidade com Roxin (2010, pág. 104/105), o ilícito penal deste século que desenvolve-se a partir das construções sistemáticas da teoria clássica e mais tarde, da neoclássica, do ilícito jurídico penal (1930) segue até a teoria finalista da ação, com base em elementos como a causalidade e a finalidade. Instante em que a causalidade abria espaço para a desvalorização dos tipos delitivos na modalidade omissiva, sendo por isso, abandonada no meio do caminho, jogada as margens da sociedade para descrédito social. Na contramão vinha a culpabilidade, que no viés da teoria finalista da ação poderia ser compreendida por meio do critério da finalidade, por constituir certos tipos penalmente relevantes. Tamanha foi a comoção social que tais discussões perduraram os vinte e cinco anos do pós-guerra, hoje, porém, tais bocas silenciaram suas críticas, vez que, ambas possuem poucos adeptos alemães.

Neste enfoque, a teoria de Roxin (apud SCHNEMANN, 2010, pág. 64) que diz que conceitos prévios de direito não se prestam a resolver problemas justamente por serem prévios, se baseia unicamente na ideia de que a pena por si mesma só alcança seu fim mediante sua imposição, e isto é ser condizente com a renúncia de todos os efeitos preventivos externos e resultados de os entendimentos teleológicos. Pois, contrário ao autor, o direito para ser justo precisa tomar conhecimento de que existe um mundo externo e viver de maneira compatível com ele – estar em conexão funcional. Busca-se portanto, sair deste círculo vicioso de repetição delitiva visando resolver os problemas que tal entendimento deixa aberto no sistema jurídico.

Para o autor, (2010, pág. 107) entra em cena a teoria da imputação objetiva, onde apenas existe a ação se esta corresponder a auto-responsabilidade, com base no finalismo da ação, mesmo que uma ação desencadeie em resultado lesão ou morte, não havendo uma modalidade delitiva que corresponda a ela, estará ausente o dolo, mas não devido ao entendimento finalista, mas sim, devido a sedes materiae, não havendo matéria que enquadre a conduta a um tipo legal, também não há cometimento de crime ou seja, em razão de que ‘o injusto deve ser sistematizado’. Em suas palavras (2010, pág. 109): “Enquanto a teoria do ilícito responde à pergunta sobre que atos são objetos de proibições penais, a categoria da responsabilidade visa a solucionar o problema dos pressupostos com base nos quais o agente poderá ser responsabilizado penalmente pelo injusto que praticou”.

De outro modo, concentrar-se unicamente na compensação da culpabilidade, é abrir parecer para entendimentos baseados em punir um determinado autor com base em sua culpabilidade, o curioso disso é que apesar das teorias contrárias a este entendimento, o caminho utilizado neste aporte jurídico penal ainda circunda a teoria da culpabilidade como norte para determinar a pena ao delito. Visa retribuir-se o delinquente com uma pena “necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. No entanto, o atual entendimento pretende abandonar o conceito bilateral desta matéria em que a culpabilidade pretende limitar e fundamentar a pena, não podendo ultrapassá-la ou ficar aquém. Leva-se em conta uma pretensão com relação ao autor e com relação a sociedade.

Este modo de ver as coisas serve também para delimitar o que deve ser punido/ sancionado. O delito segue o ilícito e por isso é determinado por lei. O que delimita a pena é também seu pressuposto. Neste enfoque, entra Lackner (apud ROXIN, 2010, pág. 118/119) concordando com o autor ao defender que: “O fato de culpabilidade e prevenção se encontrarem em ‘planos’ diversos não é” pressuposto para problematizar a união destes dois conceitos através da responsabilidade, ao contrário, pois atua como verificador de circunstâncias em que exigências de um agir preventivo venha a restringir o grau de culpabilidade no circuito penal, ela não refuta os meios de prevenção, também, não afasta o agir da teoria utilitarista, apenas busca meios preventivos que sejam eficazes e condizentes com os resultados pretendidos na seara jurídico-penal.

Adiante, conforme Schunemann (2010, pág. 65) uma formação de conceitos puramente normativista, não resolve problemas jurídicos, apenas força um caminho de lacunas, onde a justiça se perde. Parafrasear o direito não soluciona ou é capaz de fundamentar decisões. Neste ponto, o autor apresenta a necessidade de um conceito de competência, isto é “hacerse culpable-competente por um daño a la validez de la norma” (2010, pág. 65), a base para este método é a culpabilidade de forma preventiva, o que evita dar voltas em círculos, ou seja, jogar terra sobre o direito enterrando-o em suas lacunas.

O direito necessita ir além de buscar rótulos e etiquetas para fundamentar penalidades delitivas, segundo o autor o entendimento de Jakobs quando afirma que o direito precisa forçar na necessidade de concentrar esforços com vistas a evitar danos, compreende uma visão autoritária e ilimitada, o que encerra por dizer que “es nada más que uma mera afirmación, uma pura decisión adoptada como remédio para rellenar fórmulas circulares y vacías de contenido” (2010, pág. 66).

Neste enfoque, a figura de ‘competência institucional” veria mais a calhar, porém, ainda assim se apresenta questionável, em razão de determinar-se através de um status de autor relacionado ao bem jurídico, este status teria por base conceitos dados através de limites estreitos, o que finda em buscar resposta as questões jurídicas da seara penal por outras vias, fugindo desta forma do positivismo jurídico em falsa afirmativa de que o direito penal estaria incapaz de apresentar resposta eficaz. Esta ideia é refutada desde os anos trinta por meio de Schaffstein y Nain (apud SCHUNEMANN, 2010, pág. 67). Com isto, afirma-se que o direito abrange um aspecto maior que “derivar a la pena en general da mera lesión a la norma”. O instante em que Jakobs refere-se à buscar instituições jurídicas fora do âmbito-jurídico penal, compreende um retrocesso com relação ao normativismo do dever jurídico.

Buscar auxílio em instituições sociais baseado em sentimentos como confiança, se embasa em uma maneira imprópria ao conceito normativista, pois, conforme Schumann (2010, pág. 67), estaria atuando de maneira a dividir a classe de sujeitos de direito entre homem indivíduo e persona, e de outra forma, desencadearia em consequências de cunho sociológico e por este motivo, empíricas, o que teria por resultado um retorno ao direito naturalista (predominante na Alemanha entre 1870 e 1900). Neste caminho, Jakobs (apud SCHUNEMANN,pág. 68), afirma que o dolo no entendimento penal se classifica conforme o grau de indiferença do autor delitivo, ou seja, o intuito de vontade interior do agente, ideia refutada por SCHUNEMANN (2010, pág. 68) com base de que este entendimento se reduz a um círculo vicioso por meio de eliminação de fins externos fora da confirmação da validade normativa., em resumo, tal caminho, soterrado entre suas lacunas, desencadearia em uma estrada sem saída: letra morta de lei.

Deste método de ver a lógica jurídica depreende-se que o direito-penal puramente normativista em algum momento se rompe. Este conceito, ‘naturalista’ leva a uma crença de ‘equivalência’ – a raiz do resultado se baseia no valor/desvalor da ação, com isso, todo o entendimento de causas importantes e menos importantes (dolo) ficariam à mercê de decisionismo pouco científico, e um empobrecimento para o desenvolver de teorias subjetivas, haja vista, que para o autor, tais critérios (dolo/causas importantes e menos importantes) poderiam ser fingidas pelo autor perante o tribunal para ocultar ou justificar delitos (animus auctoris y del animus socii). Este entendimento, compreende um ontologismo que se baseia basicamente no dolo do agente saindo fora do entendimento puramente normativista.

Desta feita, teme-se um desenvolvimento jurídico indeterminado e dependente da opinião do jurista da casuídica, por isso, põe-se como alternativa desenvolver interpretações convencionais baseadas mais em princípios fundamentais, de forma a desenvolver uma continuação e que esta se concretize em conformidade com a matéria jurídica, decidida conforme as diferentes realidades da vida. Esta diferenciação entre norma e princípio vem sendo desenvolvida desde os anos cinquenta por Autores como Dworkin e Alexy, desencadeando na teoria dos direitos fundamentais.

A razão deste desenvolvimento é defendida com base numa relação livre de antagonismo e que encontra-se a muito enraizada no solo da sociedade e por isso, viria a ser mais facilmente aceita. Neste caminho, princípios básicos como o da danosidade e da culpabilidade (direito canônico da Idade Média; função: legitimar a ação da crueldade da pena sobre o próprio afeto) ganhariam espaço e vez. No desenvolvimento de Emanuel Kant (apud  SCHUNEMANN, 2010, pág. 72) o delinquente não pode ser utilizado como um meio para se alcançar fins, em razão de ser protegido por sua personalidade inata, quem possui esse critério de proteção é o indivíduo por ser um sujeito de direitos e deveres e não por ser ‘persona’, isto é, o homem/mulher em sua individualidade de ser humano: de carne e osso. Esta ideia de culpabilidade vem sendo desenvolvida a mais de cem anos e tem como pressupostos a ‘evitabilidade do direito e a exibilidade de sua evitação’.

Neste aporte, “deber supone poder-hacer”, na razão de Hans Albert (apud SCHUNEMANN, 2010, pág. 73), com isso, valoriza-se o direito a ser valorado, sob pena de converter-se em provérbio a exemplo de outros países, por compreenderem ‘princípios pontes’ que resultam em prescrições de deveres, o qual pressupõe um poder-fazer. Com isso, quer-se uma superação da linguagem coloquial que coloca o direito distante da população, pois o juízo de valoração está prescrito em casos reais, na raiz do percurso histórico do contexto (iter criminis). Ocorre, neste ponto uma separação entre a linguagem descritiva e a prescritiva, buscando maior fundamento e campo de significado (Bedeutungshof).

Por consequência, compreende-se que o “delito debe tratarse de um comportamento socialmente danoso” (danosidade social/ proteção do bem jurídico) elucida o autor (2010, pág. 75) e possui a proteção do ‘bien juridico’ apensar de todas as teorias de marginalização e impugnações que sofreu no decorrer do tempo, uma verdade jurídica é aquela que está na estrutura da realidade social mais variáveis mas que são determináveis. Um antijurídico torna-se delito no instante em que está em contradição com as linhas naturais de uma determinada sociedade e se descuida das boas razões aplicadas a este contexto de realidade de maneira relevante -estando em conformidade com a realidade.

No entanto, os pontos de vistas ontológicos e normativistas não se excluem entre si, mas complementam-se. E seu ponto de partida é a realidade normativa relevante. O que deve-se tomar cuidado é a ideia de valorar o dever de cuidado requerido, por abrir brechas para demasiado determinismo judicial, autoritarismo de entendimentos focados. A exemplo, como determinar o juízo de valor que uma e outra pessoa deve fazer mediante determinado caso e desenvolver da situação, sem que, com isso, ocorra uma valorização de pontos de vista?

Por este entendimento a via que desenvolve-se leva a um processo de ponderação, que valoriza fatores como a utilidade da ação que está-se desenvolvendo, seu grau de risco, a possibilidade de adotar medidas que diminuam este grau de risco e a exigibilidade de tal conduta. Deste modo, a atividade desenvolvida deve ter relação direta com seus fundamentos.

Não tardou para que as vozes alemãs tornassem a percorrer as ruas das cidades em busca de clamor social urbi et urbi dando abertura ao que Gunther Jakobs em 1999 denomina teoria do ‘direito penal do inimigo” (apud Muñoz Conde, 2010, pág. 208).  Nesta teoria o direito penal do cidadão que respeita o Estado Democrático de Direito se contrapõe ao direito penal do inimigo que emana do poder estatal. Tais inimigos perderiam o status de pessoa (Unpersonen) por se situarem de modo claro e aberto fora do Estado de Direito, devendo, por este motivo serem privadas dos direitos que o ordenamento confere às pessoas.

Esta teoria se apega aos entendimentos lombrosianos de delinquente nato, nas propostas eugênicas de Galton. Tendo por base que as marcas dos regimes autoritários alemães permanecem enraizadas nas histórias, no entanto, outros regimes autoritários permanecem escusos e fora dos holofotes, ignorados, como se nunca tivessem existido. Esta ideia tinha por base os índices de reincidência delitiva, os quais, beiravam o que denominava-se ‘incorrigíveis”. Em seu favor, dizia Von Liszt:

 

A prisão perpétua ou, se for o caso, de duração indeterminada, em campos de trabalho, em ‘servidão penal’, com estrita obrigação de trabalho sem excluir como sanção disciplinar a pena de açoites e com a consequente perda dos direitos civis e políticos, para mostrar o caráter desonroso da pena. O isolamento individual apenas operaria como sanção disciplinar em cela escura e em estrito jejum.

 

O que ele desejava é que os delinquentes fossem ‘arruinados’, e que sua ruína não custasse o dinheiro do povo, mas que fosse proveniente de suas forças e capacidades para o trabalho e custeio de suas necessidades, e que para evitar que isso fosse visto de maneira distorcida, como espécie de ‘regalia’ que fosse utilizado meios como, por exemplo, a tortura, para com isto, cobrar uma atitude digna por parte dos apenados. Conforme o autor “alimentá-los, dar-lhes ar e movimento conforme princípios racionais é um abuso do dinheiro dos contribuintes” (apud MUÑOZ CONDE, 2010, pág. 217).

Adiante, o autor propõe a classificação dos delinquentes em ocasionais, corrigíveis e incorrigíveis, existindo, deste modo dois ou mais tipos de direito penal correspondentes a cada classe delitiva: a) uma que respeitasse os direitos fundamentais individuais e outra b) sem nenhum tipo de limite para os quais fossem considerados um perigo à ordem social – os incorrigíveis; Ambas fundamentavam-se na periculosidade dos agentes (espécie criminal – Binding). O intuito maior era alcançar a ‘Justiça Retributiva’.

Já vendo a pena como retribuição ele (Binding, 2010, pág. 220) classifica as pessoas incorrigíveis no que vem a chamar ‘seres desprovidos de valor vital’. Nestas circunstâncias, Radbruch (apud MUÑOZ CONDE, 2010, pág. 221) passa a denominar delinquentes ‘habituais e profissionais’ movido pela derrota sofrida através da Primeira Guerra Mundial (1922), a qual desencadeou sério aumento na criminalidade e insegurança social movidas pelo desemprego.

O primeiro passo requerido por tais autores era a exclusão destes ‘inimigos’ do povo, em seguida misturou-se as ideias iniciais teorias movidas puramente por ódio racial, visando expressar o que denominou-se ‘poder absoluto’, abarcada pela ideia maquiavélica, de que o fim, a segurança congnitiva, justificaria os meios, uso do direito penal do inimigo. Porém, foram opiniões reconhecidas antes da entrada do Estado de Direito e de aderência aos Direitos Humanos emitidas sob contextos totalmente diferentes dos atuais, porém, mesmo na atualidade em se tratando de guerra declarada ninguém põe em dúvida a existência, mesmo que, marginalizada de um ‘direito penal do inimigo’.

Este direito é legítimo nos casos de perigo a identidade e segurança de um Estado, conforme Jakobs (apud MUÑOZ CONDE, 2010, pág. 226). O autor pede que sua tese seja vista sob o teor de valoração, sem buscar a todo custo contestar sua validade. Este entendimento seria mais que bélico, ele valeria-se através de princípios, como por exemplo, que a guerra fosse justa e não de agressão, com respeito a população e aos prisioneiros, respeitados os Convênios de Genebra de 1949, de onde extrai-se a essência do Direito humanitário. Conforme Muñoz Conde (2010, pág. 230) este direito não é próprio de um país, mas compreende um caminho para o qual diversos povos têm se direcionado, ele é voltado de maneira sui generis e assume diversas roupagens legitimando uso de arbitrariedades de maneira a vulnerabilizar o direito e o sentimento de segurança social.

Neste entendimento, o jurista Engisch (apud BETTIOL, 2010, pág. 232) fala da liberdade de vontade como uma desconhecida, mas que é indispensável para a compreensão das finalidades do direito-penal. Conforme Welzel (apud BETTIOL, 2010, pág. 233), esta desconsideração leva a distinção do querer em três categorias: a) antropológica; basear-se-ia no ser humano em sua condição primitiva, dá relevo a sua natureza animal. B) caracterológico: que refere-se a um agir movido por impulsos internos e c) categorial: movido pelo clamor social e aos ideais considerados relevantes – moral e psicológico. Para ele, a liberdade é um ato, não uma situação ou um fato.

Neste ato a pessoa liberta-se do que a determinou a tal direção que não seria própria de sua índole. Neste ponto, “é a causalidade que, expulsa pela porta, entra pela janela e torna impossível um juízo moral”, aquele juízo onde toma acento a culpabilidade, ou seja, a capacidade em que um indivíduo possui de fazer uma livre escolha entre um valor e um desvalor. O autor presa por um entendimento eticista e valorização da comunidade social, ele parte de um valorativo de consciência do indivíduo com relação a sua atitude, que se assume como pessoa em conformidade com suas atitudes “a respeito dos valores da vida e dos ditames da lei moral” (2010, pág. 235).

 

O ser ‘homem’ reside precisamente nisto: sentir na própria consciência um imperativo que pode ser seguido ou transgredido desde que depois suporte as consequências pelo comportamento havido ou pelo grau da própria culpabilidade. Culpabilidade é um conceito que se exprime em termos de censura e que varia de intensidade de homem para homem, de ação para ação, conforme o comportamento da consciência, dos motivos, dos afins.

 

 A pena baseia-se na ‘decisão consciente do crime’, embasada em um sentido ético-social, em conformidade com a desaprovação da conduta, em um campo dominado pela ética e por uma política que gravita em torno da personalidade-humana. Porém, Muñoz Conde (2010, pág. 237) se coloca como adepto da teoria democrática ‘personalista. Tais teorias foram escritas as sombras do fato criminoso’ movidas pelo sentimento de medo da guerra eminente, originada em anos de totalitarismo, em que o Estado possuía uma visão unitária do todo, visando manter-se vivo. Sentimento e razão discutiam alto nas páginas dos cadernos de leis, são as cinzas da memória de um povo que pedem para não serem esquecidas e consumidas pelo tempo.

Neste aporte, Lange (apud MUÑOZ CONDE, 2010, pág. 239) fala que o homem é mais história que qualquer outra coisa; e história é apenas uma concepção do que um dia houve, isto é, compreende apenas visões direcionadas de acontecimentos. Vez que, cada autor encaminha para o ponto que se enquadra no momento e pensamento que, por sua vez, toma vida através de sua expressão em um livro e este livro por sua vez passa a compreender o registro do que houve, ou diz-se existir.

Sendo o homem um ser incompleto e que é aperfeiçoado pela história, se abre parecer para que este, dispa-se de suas vestes autoritárias e manchadas pelos expostos aos exageros autoritaristas e siga através de um novo caminho em que não se sinta preso a este estigmatismo de definir-se e ser definido o ‘autoritário’.

Sendo portador da chave com que privou a liberdade de cidadãos, também lhe é condizente que abra as suas próprias algemas que o mantém etiquetado: o ‘autoritário’. O direito abre margem para um caminho digno e humanitário para todas as pessoas por seu caráter de ser humano, e não por uma etiqueta ou rótulo em que, um dia, a história através de uma ‘classificação’ (numérica, simbólica e outras formas) o aprisionou.

Neste aporte, entra Hans Welzel (apud HIRSCHI, 2010, pág. 247) com a teoria do injusto segundo a qual para que um delito constitua fato típico é necessário mais que ter dado causa ao resultado, é preciso também que tenha agido com vontade: ‘ação voluntária’. A ocorrência do resultado é consequência desta ação de vontade livre e consciente. Diante disto, Sanchez (2010, pág. 312) afirma que a finalidade de posicionamentos esparsos e outros mais enraizados visa apenas a manutenção do poder estatal, e para isto se serve de meios de coação e repressão social como via de combater a criminalidade e os delinquentes.

Ainda no entendimento do respectivo (2010, pág. 320), essa busca por sistematizar o direito visa a obtenção do que denomina-se direitos humanos, em que estes sirvam a todos os povos e classes efetuando uma junção de ideias e ações conjuntas – indivíduo-sociedade -, busca determinar um horizonte normativo comum.

De outra sorte, Melia (2010, pág. 404) apresenta a necessidade de uma política-criminal, instante em que rejeita a ideia do posicionamento vítima, acreditando inclusive na necessidade de uma sanção para as enquadradas neste conceito. Este entendimento busca reduzir a punibilidade dos autores supondo que a vítima deve tomar medidas de autoproteção como meio de evitar a comiseração de delitos. Busca-se a todo custo evitar a consumação delitiva. Este entendimento é também, mais coerente do ponto de vista econômico. Se pretende proteger interesses diferentes dos que circundam a vítima ao obriga-la a autoproteção, protege-se, ainda potenciais vítimas, consubstanciando uma espécie de ‘vítima descuidada’. Em conformidade:

 

...es injusto dejar de tener en cuenta la conducta de la víctima em los procedimentos penales, pues teniendo em cuenta la mayor probabilidade de que las víctimas descuidadas (em relación com las precavidas) se convíertan realmente en víctimas de hechos delictivos, los costes de la protección de víctimas cuidadosas. Por lo tanto, em el sistema actual, las víctimas precavidas son explotadas para proteger las descuidadas.

 

Esta compreensão parte do sentido de que ‘autor’ e ‘vítima’ andam em conjunto, o que reproduz enorme ‘com-fusión’. Não se quer com esta ideia diminuir a potencialidade de lesão do autor, apenas se quer analisar o âmbito do punível, em razão disso, em suas palavras (2010, pág. 406) “si la intervención del titular del bien jurídico afectado no es tenida em cuenta, se producirá um castigo em excesso al autor”.

O perigo desta visão está em converter o posicionamento entre autor e vítima, confundindo-os na concepção jurídica final, findando numa projeção do ilícito na vítima; o uso de vítima como etiqueta. Teme-se uma sistematização do posicionamento vítima denominada vitimodogmática  onde a punição em ultima ratio encerra por converter os polos ativos e passivos do tipo jurídico penal. Porém, afirmar proteção a determinado bem jurídico sem compreender a vítima como passível de proteção jurídica compreende um paradigma difícil de ser superado. Para Melia (2010, pág. 409):

 

... debe existir uma correspondência entre la necessidade de pena del comportamento del autor y la necesidad de proteción de la víctima. A esta argumentación se le añade que el princípio de subsidiariedade impone la incriminación penal tan sólo si no existen médios sociales de solución del conflito: em este sentido, se llega a la conclusión antes reproduzida de que no cabría incriminar aquellas conductas frente a las cuales la víctima puede protegerse por si misma.

 

 Para isto, propõe-se duas dogmáticas uma em que se constata os denominados delitos de relação, nestes os delitos são consubstanciados em uma relação humana, é necessária uma confrontação direta e atual entre autor e vítima. De outro lado, tem-se os delitos de intervenção, aqui é necessário que a vítima participe do comportamento da ação delitiva, prescinde que o autor intervenha ou aceite os bens jurídicos protegidos pelo titular, ou seja, a vítima deixa de tomar as medidas necessárias para a proteção do seu bem-jurídico. Ambas baseiam-se no fato de que todo tipo delitivo precisa de algo mais que um mero resultado natural. Porém, esta ideia embora bem elaborada, ainda é considerada como um retrocesso em matéria penal, conforme o autor.

No entanto, elas são capazes de lançar uma luz nas sombras dos becos em que os delitos são cometidos e muitas vezes silenciados por pessoas que poderiam ajudar a elucida-los ou até evita-los. Diante disto, penaliza-se a vítima (comparative fault) que tenha se comportado de modo reprovável, no entanto, este modo de agir abre margem para o decisionismo judicial, instante em que, fica dependente do critério de interpretação do juiz quanto a contribuição da vítima e a determinação da penalização ou não da própria e até que ponto. Destarte, que o autor Melia puxa à baila esta discussão apenas com o intuito de fomentar um raciocínio crítico acerca da ligação indissolúvel entre autor e vítima (2010, pág. 430).

De tudo isso, extrai-se atualmente a banalização do uso dos direitos humanos, momento em que o autor tem vestido as vestes da vítima e etiquetado o rosto com a nomenclatura (vítima/vitimizado), e com isso calando-a e fazendo com que o delito nunca emerja.

Neste momento, Rivacoba (2010, pág. 431) indaga sobre a existência de um romantismo jurídico com relação a defesa social? Neste ínterim, Soler (apud RIVACOBA, 2010, pág. 439) define: “muéstrame tus leyes penales, porque te quiero conocer a fondo”.

Conforme se extrai de entendimentos a sociedade mobilizada pelo clamor de noticiários ocasionam as falácias, ou seja, posicionamentos destituídos de compreensões especializadas mas nem por isso, destituídas de comoção e apego a ideias o que pode ocasionar em um posicionamento jurídico destituído de normatividade, movido apenas por clamor – gritos do povo.

Neste momento ideias mobilizadas por sentimentalismo e ideias de heroísmo adentram em terras destituídas do teor jurídico necessário para uma compreensão eficaz. Por este motivo, projetos de lei são mandados para sancionar nas câmaras promulgadoras, sem conhecimento ou necessidade alguma, ocasionando uma sobrecarga de medidas ineficazes e o povo que já estava clamando por mudança percebe esta insegurança jurídica e finda por descrer no sistema em que se encontra.

Ideias sem raciocínio e entendimento especializado tomam as ruas e das ruas entram para o Congresso retornando em forma de lei. Necessita-se abrir um parecer aqui para indagar: qual a eficácia desta promulgação desmedida de leis? Apresentar ao povo uma lei com sanção aparente, no chamado ‘tapa buraco’ conscientiza e mantém calado o povo até que ponto?

No instante em que pequenos entendimentos forem resolvidos, será viável uma solução eficaz.

 

4.      CONTRAPOSIÇÃO ENTRE A NEGAÇÃO À PRISÃO PERPÉTUA VERSUS A IMPRESCRITIBILIDADE DO DELITO DE RACISMO

Prescinde vir à conhecimento sobre a imprescritibilidade do delito de racismo. O posicionamento de direitos e garantias no rol do art. 5º da CF, confere a estes direitos e garantias proteção de cláusula pétrea, estando eles proibidos de serem abolidos ou diminuídos.

Diante disso (art. 5, XLII da CF/88) é imprescritível e inafiançável a crime de praticar racismo. A partir deste momento, Feldens (2014, pág. 394) vê a Constituição “como fonte, a um só tempo, de legitimação e limitação do poder constituído; é dizer, de abertura e de contenção do poder estatal”. O fim a que se destina é proteger os direitos e garantias fundamentais. Ou seja, ela compreende a) limite material, b) fonte valorativa e c) fundamento normativo. Estes direitos posicionam-se como valores e exigem do Estado um dever de prestação. O mandado constitucional torna soberano valores considerados fundamentais em determinada sociedade, os quais não podem ser suprimidos ou extraídos sob pena de condenar este sistema ao suicídio.

Com isso, o mandado de criminalização cria uma relação de abrigo contra a espécie delitiva, estabelecendo seus termos e limites., o qual não pode estar além ou aquém do constitucionalmente admitido (princípios: proibição do excesso e proibição deficiente). Conforme Feldens (2014, pág. 395) encontrar-se-á “de um lado, um limite garantista intransponível (intervenção necessariamente mínima); de outro, um conteúdo mínimo irrenunciável de coerção (intervenção minimamente necessária).

Com isso, o constituinte não se mostrou indiferente ao fato de 45% da população brasileira ser constituída por pessoas negras ou pardas. Então estabeleceu uma sociedade livre de preconceitos com relação a raça e outros (art. 3º, IV) e criminalizou a prática de racismo (art. 5, XLII). Porém, esta questão ultrapassa a definição de ‘cor’.

Neste aporte o autor (2014, pág. 395) utiliza a articulação linguística ‘da raça ao racismo’. Aborda-se o fato de que o racismo é mais que um fator biológico (cor ou raça) mas sim um fenômeno social que se baseia em discriminar e não necessariamente na raça. Diz-se, que é mais um delito de pele, pois trata-se de um sentir-se discriminado, refere-se a um fator psicológico mobilizado por fatores externos e não propriamente localizado na questão da raça do indivíduo.

Este delito, então transcende outros fatores constitucionalmente elencados, inclusive, em cláusula pétrea quando acredita em sua imprescritibilidade, vez que, o autor do delito, encontrar-se-á algemado em uma via de prisão perpétua por ter cometido um delito que será considerado imprescritível. Ou seja, sua capacidade para penalizar nunca perderá a eficácia e normatividade, pondo em xeque princípios em espécie como da dignidade da pessoa humana e igualdade jurídica.

Vê-se que, via de exceção, conforme o autor (2014, pág. 396) “a potestade sancionadora do Estado não é eterna” (art. 109 e ss. Do CP), este entendimento se baseia com a intenção de evitar a inércia estatal no que tange aos delitos, de maneira a impedir o prolongamento investigativo da matéria, da ação ou execução penal e também, o direito de manter consigo a denúncia com vistas a decisionismo quanto a apresenta-la a autoridades competentes. Destarte que no viés internacional conforme o art. 29 do Estatuto de Roma os direitos lá elencados também não prescrevem, porém, tais direitos têm efeitos infraconstitucional, isto é, não se sobrepõe ao que está expresso no texto da Charta Maior.

Confronta o posicionamento da imprescritibilidade do delito de racismo o fato de que outros direitos como à vida e nisto adentra-se delitos como homicídio, estupro e hediondos, os quais nenhum é imprescritível. Este entendimento direciona a compreensão de que cometer um ato de racismo estaria a ferir o seio da sociedade mais que um delito contra a vida ou liberdade sexual e afins. Surge, então a dúvida de: por quê, estes direitos não seriam imprescritíveis como o outro?

É sabido que o delito de (art. XLIV) a ação de grupos armados civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, também, são imprescritíveis, mas aqui, estar-se-ia referindo a delitos que põe em perigo a ordem social e a vigência e soberania do Estado.

A ver de entendimento, a própria Constituição apresenta um conflito de diretriz no que refere-se ao assunto, pondo uma modalidade delitiva acima de outras de não menor importância.

 

5.      CONCLUSÃO

Do exposto, extrai-se que há certa divergência em cláusulas pétreas protetivas de direitos e deveres fundamentais quando afirmam de um lado a negação à prisão perpétua e de outro a imprescritibilidade do delito de racismo. Vez que, ambos os direitos e garantias possuem o mesmo valor jurídico, porém, expostos desta maneira estariam a colidir um com o outro.

Desta colisão, brota no seio nacional uma possível insegurança jurídica e social. Afinal, como um direito pode deter mais valia que outro e estar em colisão com ele mesmo? Nesta afirmativa depreende-se que o delito de racismo é mais que um delito de cor, compreende mais que um crime de-cor-ado -  expresso no caderno de leis e decorada as suas formas e consumações.

Ele compreende mais que um delito com possibilidade de inversão de polos entre autor e vítima. Não se define por um guardar na memória, ou gravar com vistas a não esquecer.

Embasa um delito de pele em que sentimentalismo e razão andam de mãos dadas. É mais que um envolver da pessoa humana, que se consubstancia por fatores externos, e que, por sua vez, possui função (social, psicológica e etc.).

Por este caminho é que evidencia-se a necessidade de estudar a casuídica de possível colisão de direitos existente entre a negação a prisão perpétua e a imprescritibilidade do delito de racismo, a par de outros direitos não menos importantes como a vida, por exemplo. Vez que um encerra por anular o outro e causa insegurança social, por abrir margens a pareceres decisionistas de um lado e na contramão o estar rompendo sua validade e por sua vez, eficácia social.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FELDENS, Luciano. Art. 5º, XLII. In: Comentários à Constituição do Brasil. Org: CANOTILHO, J.J Gomes et. All. São Paulo: Saraiva/Almeida, 2014.

SANT’ANA PEDRA, Adriano. A Constituição Viva: Poder Constituinte Permanente e Cláusula Pétreas. Belo horizonte, Mandamentos. 2005.

SARLET, Ingo Wolfgang e BRANDÃO, Rodrigo. Art. 60. In: Comentários à Constituição do Brasil. Org: CANOTILHO, J.J Gomes et. All. São Paulo: Saraiva/Almeida, 2014.

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ROXIN, Claus. Reflexões Sobre a Construção Sistemática do Direito Penal. In: Doutrinas Essenciais de Direito Penal. Parte Geral I. Volume II. Org: FRANCO, Alberto Silva, et. All. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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MUÑOZ CONDE, Francisco. As Origens Ideológicas do Direito Penal do Inimigo. In: Doutrinas Essenciais de Direito Penal. Parte Geral I. Volume II. Org: FRANCO, Alberto Silva, et. All. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

HIRSCH, Hans Joachim. Sobre o Estado Atual da Dogmática Jurídico-Penal na Alemanha. In: Doutrinas Essenciais de Direito Penal. Parte Geral I. Volume II. Org: FRANCO, Alberto Silva, et. All. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

MELIÁ, Manuel Cancio. Reflexiones Sobre la ‘Victimodogmatica’ em La Teoria Del Delito. In: Doutrinas Essenciais de Direito Penal. Parte Geral I. Volume II. Org: FRANCO, Alberto Silva, et. All. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

RIVACOBA, Manuel de Rivacoba y. Hacia Un Nuevo Conceptualismo Jurídico? In: Doutrinas Essenciais de Direito Penal. Parte Geral I. Volume II. Org: FRANCO, Alberto Silva, et. All. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.


 

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Administração Pública: Poder de Polícia

 

Administração Publica: Poder de Polícia

 

1.    Introdução

Sabemos que o Estado precisa de mecanismos próprios para atingir seus objetivos, previstos na Constituição Federal, e que são qualificados como poderes ou prerrogativas especiais de Direito Publico. No momento em que o Poder Público interfere na trajetória do interesse privado para proteger o interesse público, reduzindo direitos individuais, atua no exercício de poder de polícia.

1.2-Sentido amplo e restrito

A expressão poder de polícia admite dois sentidos, sendo eles um amplo, que designa qualquer ação restritiva do Estado relacionada aos direitos individuais, cuja qual é função do Poder Legislativo, incluído neste a criação da legislação. E o sentido restrito onde este poder é uma atividade administrativa, expresso no poder de restringir e condicionar o exercício dos direitos individuais em prol do interesse coletivo. Definido no Código Tributário Nacional, art.78. “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.”

1.3-Atributos de poder de polícia

Este poder apresenta as seguintes características:

Discricionariedade: a Administração Pública é incumbida de estabelecer de acordo com sua conveniência e oportunidade, as limitações, sanções e condições impostas ao exercício dos direitos individuais, no entanto a partir destes fixados, se tornam atos vinculados a administração a qual se obriga à cumpri-los.

Autoexecutoriedade: com exceções as cobranças de multas, se contestadas particularmente, a Administração Pública pode exercer o poder de polícia sem a necessidade de autorização judiciária, (desde que prevista em lei e em caráter de emergência), ficando a mesma sob o risco de sofrer seu controle posteriormente ao ato.

Coercibilidade: limitado pelo princípio da proporcionalidade, os atos do poder de polícia podem ser impostos aos particulares, mesmo que através do uso da força para tal.

1.4- Poder de polícia e segurança pública

O poder de polícia é exercido pela polícia administrativa, estando ele disperso nos vários órgãos da administração pública e limitado pelas mesmas normas, já a segurança pública é protegida pelos órgãos descritos no art. 144 da CF, sendo eles, polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia militar e polícia civil, cuja atuação é subordinada ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, obedecem às normas e processos penais, e atuam de forma a prevenir e reprimir os crimes e contravenções. Nada impede que um mesmo órgão possa exercer atividades de polícia administrativa e judiciária, á exemplo da Polícia Federal que age de forma administrativa ao emitir passaportes e de maneira judiciária ao realizar inquéritos policiais.

1.5-Diferença entre polícia administrativa e polícia judiciária

A linha de diferenciação está na ocorrência ou não de ilícito penal. Com efeito, quando atua na área do ilícito puramente administrativo (preventiva ou repressivamente), a polícia é administrativa. Quando o ilícito penal é praticado, é a policia judiciária que age (LAZZARINI, RJTJ-SP, v.98:20-25, apud DI PIETRO, 2002, P. 112).

1.6- Financiamento das atividades de polícia

É licita a cobrança de taxas do interessado pelo poder de polícia, de acordo com a CF e o Código Tributário Nacional, taxa a qual tem destino de custear a atividade de policia administrativa ou de um serviço público divisível, já a tarifa que possui origem contratual, somente é cobrada quando o consumidor usufrui o serviço, esta se presta a remunerar serviços públicos econômicos (energia, água, transporte).

1.7- Competência

Fica a cargo da CF conferir a competência de regular a matéria. Caso a mesma não se pronuncie, se utiliza a predominância de interesse, segundo a qual a União se responsabiliza pelos assuntos de interesse nacional, a polícia estadual se sujeita aos assuntos regionais e a polícia municipal se encarrega pelos interesses locais.

1.8 Meios de Atuação

Há dois modos em que a polícia administrativa pode atuar, sendo os respectivos, modo preventivo (onde são estabelecidas normas e outorgados alvarás, para que os indivíduos exerçam seus direitos em acordo com o interesse público), e modo repressivo (composta por atos de fiscalizações e aplicações de sanções administrativas). Em regra a atuação administrativa é preventiva, pois seu objetivo esta em preservar o interesse público.

Também é possível a classificação em atos normativos: onde a lei limita o exercício de direito e o Executivo disciplina a aplicação das leis aos casos concretos por meio de decretos, instruções e portarias... E ainda, os atos administrativos e operações materiais de aplicação de lei ao caso concreto, que engloba as medidas preventivas (fiscalização, vistoria, ordem) e repressivas (dissolução de reunião, interdição de atividade).

1.9- Ciclo de polícia

A atividade do poder de polícia tem obediência à seguinte direção de atos: norma de polícia, ou seja, a legislação que estabelece os limites dos exercícios de direitos privados, podendo ser regulada de forma constitucional, legal ou regulamentar; a permissão de polícia, que consente ao particular o exercício de atividade controlada pelo Poder Público;  a fiscalização: que objetiva fiscalizar o cumprimento de condições e normas estabelecidas na permissão de polícia; e a sanção de polícia, onde se aplicam as sanções aos que descumprirem as normas impostas pelos mesmos.

1.10-Delegação do poder de polícia

Dividem-se em quatro as atividades relativas ao poder de polícia sendo que, as atividades típicas da Administração Pública que se constituem das sanções e legislações são indelegáveis. No entanto, o consentimento e a fiscalização por não possuírem função coercitiva podem ser delegados.

1.11- Limites do poder de polícia

Seus limites se encontram nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sendo que os interesses individuais apenas se restringem no que tange a indispensabilidade para a satisfação do interesse público. Quanto a aplicação de sanções, só se faz possível por meio do devido processo legal, possibilitando ao indivíduo seus respectivos direitos. Igualmente existem atividades sobre os quais a polícia não tem poder de ação, devido a proteção da CF à determinados direitos, como o caso do jornalismo.

1.12- Prazo prescricional do poder de polícia

Prevista pela Lei 9.873/99, o prazo de cinco anos para que o poder de polícia apure as ocorrências de infrações administrativas e este prazo se enquadra ainda, no limite para a aplicação das penas conferidas no processo administrativo. No entanto no caso em que a infração administrativa tiver correspondência criminal, a mesma corresponderá ao prazo de prescrição do CP. Incidem em prescrição, ainda o processo que ficar paralisado por mais de três anos.


Argumentação Jurídica

 

ARGUMENTAÇÃO JURIDICA

 

LÓGICA JURÍDICA e NOVA RETÓRICA

 

Capítulo II

 

A lógica Jurídica e a Argumentação

 

            Este trabalho se atenta ao fato de que o raciocínio judiciário, tem por fim discernir e justificar a solução de uma controvérsia, na qual argumentos em diversos sentidos se explanam em consonância com o trâmite processual, conduzidas de forma a convencer a respeito de valores ou um compromisso valorativo que possa ser aceito em dado momento, ou em um respectivo meio.

“Durante séculos, quando a busca da solução justa era o valor central que o juiz deveria levar em conta, e os critérios do justo eram comum ao direito, á moral e a religião, o direito se caracterizava principalmente pela competência atribuída a certos órgãos para legislar e a outros para julgar e administrar, assim como os procedimentos que deviam ser observados em cada caso. Muitas vezes, aliás, todos os poderes estavam reunidos nas mãos do soberano, que podia delegar a funcionários a missão de julgar e de administrar, nos limites definidos pelo mandato que lhe fora outorgado. A argumentação jurídica era ainda menos especifica porque não havia necessidade de motivar as sentenças, as fontes do direito eram imprecisas, o sistema do direito era pouco elaborado e as decisões da justiça quase não eram levadas ao conhecimento do publico.” [1]

            No entanto esta situação muda totalmente após a Revolução Francesa, com a publicação de leis codificadas e a separação do poderes, trazendo a motivação do juiz em suas sentenças em conformidade com a legislação efetiva, mesmo nos casos em que houvesse obscuridade, silêncio ou insuficiência legislativa, trazendo em sua essência a valoração da segurança jurídica, dando conformidade entre decisões judiciais e o orde-

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Notas de Rodapé

[1]-PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica e Nova Retórica ,pag 183.

namento jurídico. O juiz estava preso ao positivismo jurídico, sendo totalmente submisso as regras expressas, independentemente de seu senso de justiça ou de sua vontade. Essa sujeição orientou os teóricos da escola exegese á sistematizar o direito.

            Desde o processo de Nuremberg, é notória entre a maioria dos teóricos do direito, um posicionamento antipositivista, que busca uma solução, que não fosse apenas sistemática, mas social e moralmente aceitável, em uma visão naturalista do direito, através da interpretação da lei na prática da lei. Nesse sentido, distinguem-se três fazes na ideologia judiciária, sendo a primeira, antes da Revolução Francesa, independente de motivação judiciária, apesar de valorar a justiça das decisões, por essa razão era presa a idéia de tratamento igual para casos semelhantes, daí então resultando a importância ás regras consuetudinárias e os precedentes. Este modo de analisar subordinava o poder judiciário ao poder legislativo patrocinava uma direção estatizante e legalista do direito.

            Após esse período ocorreu uma reação que incumbe ao juiz a motivação de suas decisões, dando a cada caso específico uma solução equitativa e razoável, sem que com isso se desvencilhe do sistema jurídico. No entanto, a lei tornou-se flexível e as decisões suscetíveis de intervenção das regras não escritas, representadas pelos tópicos jurídicos e através dos princípios gerais do direito, o que majora a estima do direito pretoriano, tornando o juiz auxiliar e complemento do legislador.

            Como se trata motivar as decisões de forma a serem aceitáveis, a argumentação se tornou essencial para este fim, no sentido especifico de mostrar a interpretação da lei que melhor se concilie ao caso concreto. O raciocínio judicial atual, não nos permite uma distinção tão notória entre o direito positivo e o direito natural, quanto ocorria no século XIX. Visto que o direito positivo atuante, já não coincide com os textos expressados, visto que possui o alcance de suas disposições dilatadas ou limitadas pelos princípios e regras do direito não escrito, embora formalmente válidos vêem sua eficácia regulamentada através de outros dispositivos, para conciliar as divergências existentes entre a letra dos textos da lei, sua interpretação e sua aplicação.

            É notório que os textos conforme estão expressos nem sempre refletem a realidade jurídica.

 “Quando uma sociedade está profundamente dividida sobre uma questão particular, e não se quer colidir de frente com uma parte considerável da população, nas sociedades democráticas em que se desejar que as medidas de coerção se beneficiem de um amplo consensus é-se obrigado a recorrer a compromissos fundamentados numa aplicação seletiva da lei, seja possível, graças ao costume estabelecido, fazer os textos coincidirem com a realidade”.[2]

            No mesmo sentido, quando uma pratica secular, considerada até então satisfatória, for contestada, através de um dispositivo legal, os juristas buscaram uma in-

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[2]- PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica e Nova Retórica ,pag 189.

terpretação legal, ao invés de forçar o abandono de uma pratica costumeira e sensata. Neste sentido, sempre que uma solução trazer em seu conteúdo o bom senso, a equidade, ou o interesse geral e a mesma se apresentem como única admissível, ela tendera a se impor juridicamente, mesmo que seja necessário se socorrer a uma argumentação especiosa para explanar sua conformidade com o ordenamento jurídico em vigor, isto ocorre porque a paz judicial apenas se estabelece, no momento em que a solução que se mostre mais aceitável socialmente, for acompanhada de argumentação jurídica satisfatoriamente sólida (mesmo que fictícia). Esta busca pela argumentação, que ocorre através da doutrina e jurisprudência é o que patrocina a evolução do direito, por meio da intervenção do legislador.

            Toda vez que há uma incompatibilidade entre o que a lei aparentemente dispõe e o que uma solução de um caso em particular parece exigir, será estabelecida a solução da de lege lata  e a de lege ferenda, onde que a minoria se dobra diante de uma decisão que lhe parece insatisfatória, porem manifestando seu contentamento. No entanto, raramente um tribunal, deixa de encontrar, através da técnica jurídica, uma forma de conciliar uma solução aceitável com a fidelidade legal. Para servir-se deste resultado, o legislador se presta a criação de uma antinomia entre uma disposição positivada e uma regra jurídica não escrita, limitando então o alcance de seu texto, criando assim, uma lacuna, cuja qual o juiz preenchera através de uma regra do direito natural (não escrito).

            Essas atitudes nos remetem a um problema vasto, o da analogia entre a verdade e a justiça, visto que a ficção é um momento extremo, onde a preocupação com a equidade, prevalece frente a verdade, no entanto não é único caso, onde o direito atribui relevância a outros valores que não a verdade, ainda que, seja somente utilizada em primazia a segurança jurídica. O próprio sistema jurídico salienta esta corrente, verificável nas tipificações onde o aparelho jurídico coloca as relações de respeito, amor e confiança, supostamente existente nos parentes próximos, antes do compromisso com a verdade real. Visto que o sistema somente pune a mentira quando se trata de detrimento de um parente, por tanto em acordo com o sistema legal, a mentira só é punível caso a testemunha tenha prestado juramento em dizer a verdade, e em se tratando de cônjuge, ou parente em linha reta de uma das partes, não podem ser ajustadas como testemunhas.

            Nesse sentido, o próprio ordenamento obriga certas pessoas ao sigilo, como exemplo nos casos, em que decorrer de segredo profissional, sendo assim, um determinado profissional, pode prevalecer-se desta lei, para recusar-se a depor sobre os fatos que tenha tido conhecimento durante o exercício profissional, porem o sigilo se limita aos interesses dos doentes ou familiar. Nesta vertente, a presunção da inocência garante ao réu o direito de permanecer calado. Ainda nesse enfoque, há situações em que á punível a imputação verdadeira, por falta de provas. Assim salienta o Código Penal belga em seu art. 449, que a pessoa que profanar mentiras que atinjam a honra do individuo, ou mesmo que alegar fatos cuja verdade seja necessário comprovar, será considera culpado. E vai adiante, por mais que exista no momento do delito provas legal dos fatos imputados, será acatado como culpado por divulgação dolosa, visto que agiu com o intuito de prejudicar. Existem ainda os casos, onde aquele que delatar a verdade será culpado por denunciação, mesmo que seja a condenação apenas no plano moral. Existem diversos exemplos em que o nosso sistema prima por outros valores que não a verdade, mesmo em casos em que a decisão se pondere através da ciência objetiva dos fatos.

            Por esta razão, nos regimes democráticos, os recursos as ficções é mais comum nos júris que entre os juízes togados, visto que os últimos, tiveram sua consciência profissional, formada em conformidade ao espírito de fidelidade legal. Sendo assim:

“para que exista um Estado de direito é necessário de fato que aqueles que governam o Estado, e são encarregados de administrar e de julgar em conformidade com a lei, observem as regras que eles mesmos instituíram. Na ausência daquilo que os americanos qualificam de due process of Law,  o respeito pelas regras da honesta aplicação da justiça, a própria idéia de direito pode servir de biombo a todos os excessos de um poder arbitrário”[3]sendo então considerada, “indispensável para a existência de um Estado de direito, sendo as sete outras aquelas que se impõem ao legislador para que o direito possa cumprir sua função de ser a empreitada de ‘submeter o comportamento humano ao governo das regras’”.[4].

            Nesse sentido, conclui-se que para a existência de um Estado de direito, necessita de um poder judiciário independente, “é a essa exigência que corresponde a teoria da separação dos poderes, a inamovibilidade dos juízes e a interdição de constituir tribunais especiais”. [5]. Nesse contexto:

“...se o direito é um instrumento flexível e capaz de adaptar-se aos valores considerados prioritários pelo juiz, não será necessário, em tal perspectiva, que o juiz decida em função de diretrizes vindas do governo, mas em função dos valores dominantes na sociedade, sendo sua missão conciliar com esses valores as leis e as instituições estabelecidas, de modo que ponha em evidência não apenas a legalidade, mas também o caráter razoável e aceitável de suas decisões” [6].

            O direito se desenvolve em equilíbrio de uma ordem sistemática, ou seja a elaboração de uma ordem jurídica coerente, e outra pragmática, sendo ela a busca de solução pelo meio que considere justo e razoável. Essa dupla exigência, pode causar desacordos, verificável, pois que os juízes de primeiro grau são mais suscetíveis a equidade da decisão, enquanto os a Corte de Cassação é mais propensa a conformidade

­­­­_________________                 

[3]-[4]- PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica e Nova Retórica ,pag 199.

[5]- PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica e Nova Retórica ,pag 200.

[6]- PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica e Nova Retórica ,pag 200.

 com o direito. Neste sentido, é preciso ter em mente que as decisões dos conflitos devem satisfazer três auditórios diferentes, sendo elas, as partes em litígio, os profissionais de direito e por fim, a opinião publica que se manifesta por meio da imprensa, ou mesmo através das reações legislativas.

            O juiz cuja tarefa é apreciar os argumentos apresentados pelas partes, deve impedir uma deliberação puramente subjetiva, tarefa esta, facilitada através da instauração da colegialidade, proposta a demonstrar uma decisão a partir de premissas supostamente verídicas. Sendo assim, a lógica jurídica, encontra-se na idéia de adesão, nesse sentido o que o advogado procura conseguir é a adesão do juiz aos seus preceitos, através da argumentação, por acordos preliminares, cujo qual será mais favorecido caso, apresente presunções e precedentes em favor do que argumenta, visto que se encaminha mais facilmente a ordem legal.

Via de regra é fora do tribunal, na própria sociedade, que se realizam lentamente as mudanças de opinião que levam a uma transformação dos âmbitos nos quais se desenrolam os debates judiciários. Os debates políticos e filosóficos, bem como as construções doutrinais dos juristas, contribuem para essas mudanças fundamentais, resultantes do continuado esforço de conciliação entre as exigências do direito e da equidade, entre as necessidades de estabilidade e a adaptação as situações novas, entre a salvaguarda dos valores e das instituições. Mais fundamental para a lógica judiciária, estes debates dirão respeito ao papel do juiz na aplicação e na criação do direito.”[7]

            Para tanto, o trabalho do juiz é conciliar a lei com a equidade. Pois tendo enfoque na lei, ele poderá de forma mais facilitada, para estender ou limitar seu alcance de forma que suas decisões se processem de maneira inequívoca e razoável. Justificado pelo fato de que o direito nasce no meio social é que a sociologia do direito tem significativa importância, posto que o direito não possa ser cumprido de forma realista, ao contrario, deve por em primazia atender ao interesse social, em relevância ao caráter social que o mesmo deve efetivar. Em uma sociedade democrática o direito deve ser aceito, e não imposto, como vontade soberana. Sabendo que nem todo o poder emana da vontade divida, mas sim da nação, é a esta que os que exercem o poder em seu nome, devem prestar contas.

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[7]- PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica e Nova Retórica ,pag 240-241.

Por tanto, o juiz deve dizer o direito em conformidade com a vontade da nação.

“O papel da lógica formal consiste em tornar a conclusão solidaria com as premissas, mas o papel da lógica jurídica é demonstrar a aceitabilidade das premissas. Esta resulta da confrontação dos meios de prova, dos argumentos e dos valores que se defrontam na lide; o juiz deve efetuar a arbitragem deles para tomar a decisão e motivar o julgamento.”[8]

            Pode ocorrer que frente a impossibilidade de motivação de sua decisão, o juiz se veja obrigado a modificar sua decisão. Em outras vezes, ocorrera o contraposto, pois será a interpretação das regras que será modificada, ocorrendo a alteração de uma jurisprudência, com base em construções doutrinarias preliminares. No entanto, há casos em que o juiz apenas poderá manter sua decisão recorrendo a ficção, seja na qualificação dos fatos ou mesmo na motivação da sentença. Porem este ultima recurso, causa um mal estar jurídico, deflagrando que o sistema é impróprio para resolver todas as exigências sociais, fazendo-se necessária uma modificação, preferencialmente, legislativa.

            A lógica jurídica apresenta-se, não através de uma lógica formal, mas como uma argumentação que depende do modo de como os operadores de direito concebem sua missão e da lógica que possuem do direito e de seu funcionamento social.

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[8]- PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica e Nova Retórica ,pag 242.

 

Referencia Bibliográfica:

PERELMAN, Chaïm, Lógica Jurídica e Nova Retórica. Editora Martins Fontes. São Paulo. Ed. 2000