Resumo: A presente pesquisa pretende analisar as
casuísticas em espécie em que o delito de desacato é utilizado para mascarar a
configuração do crime de abuso de autoridade, enfatizando o conhecimento
jurídico como uma aposta para a promoção da isonomia jurídica e da justiça nos
termos da Constituição Federativa do Brasil. No intuito de verificar uma
resposta a essa temática, formulou-se o seguinte problema de pesquisa: é
possível que o conhecimento jurídico seja meio eficiente e eficaz para
descobrir quando uma alegação de desacato refira-se a mera camuflagem para
encobrir o cometimento do delito de abuso de poder? Visando responder ao
problema proposto, o trabalho tem por objetivo geral discutir a possibilidade
de o judiciário desestimular a prática das alegações infundadas do crime de
desacato, restaurando a justiça no plano prático. E, por objetivos específicos:
a) estudar as peculiaridades da atividade policial; b) examinar os tipos
delitivos dos delitos de desacato e de abuso de autoridade; c) analisar os
posicionamentos jurisprudenciais acerca do tema. O aprofundamento teórico
pautou-se em pesquisa bibliográfica, consubstanciada na leitura de diversas
obras, apoiando-se em um método indutivo.
Palavras-chave: Desacato; Abuso de poder; Tutela;
Dignidade da pessoa humana; Arbitrariedade.
Obs: Artigo publicado pela Revista Brasileira de Ciências Policiais.
1.
INTRODUÇÃO
Este
artigo retrata um estudo efetuado na casuística em espécie em que ocorre
alegações da configuração do delito de desacato, para camuflar as ocorrências
policiais arbitrárias ensejadoras do delito de abuso de autoridade, conforme
será evidenciado por meio de respaldo jurídico, doutrinário e jurisprudencial.
Para
isto, em primeiro instante será abordada as peculiaridades da atividade
policial militar, iniciando o estudo por meio do posicionamento legal, e
findando na análise doutrinária acerca do tema.
Em
seguida, passar-se-á para o núcleo deste artigo, ou seja, o exame do delito de
desacato, momento em que serão avaliadas todas as suas peculiaridades, vindo à
baila as casuísticas em espécie em que esta modalidade delitiva é utilizada
como forma de mascarar as condutas arbitrárias, principalmente, dos agentes da
lei, em uma tentativa de afugentar a denunciação pelo cidadão do crime de abuso
de autoridade.
Para
que esta visualização prática seja possível ao leitor, este artigo prosseguirá
efetuando uma análise ao delito de abuso de autoridade, de maneira que ao fim
deste estudo o entendedor da lei tenha conhecimento suficiente para distinguir
a ocorrência delitiva de abuso de autoridade, camuflada no delito de desacato,
posição esta que será afirmada por meio de casos práticos extraídos de
pesquisas jurisprudenciais.
2.
PECULIARIDADES
DA ATIVIDADE POLICIAL MILITAR
Em
razão da essencialidade da atividade policial militar, a mesma encontra
expressão nas páginas do caderno constitucional desde seu preâmbulo, instante
em que é expresso como objetivo do Estado Democrático brasileiro “assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida”, no plano interno e
internacional “com a solução pacífica das controvérsias”.
Enquanto
o art. 3° traz em sua envergadura como objetivo fundamental da república
brasileira a promoção do bem de todos, indistintamente, para isto o
constituinte originário esculpiu em cláusula pétrea (caput do art. 5°) a inviolabilidade, aos brasileiros e
estrangeiros, do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e
a propriedade, nada obstante descreveu nova proteção constitucional à segurança em seu art. 6°, destacando-a
como direito social.
Ademais,
é de competência privativa da União, legislar sobre (art. 22, XXI) “normas gerais de organização, efetivos,
material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e
corpos de bombeiros militares”, e diante disto, os integrantes das Polícias
Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, compreendem “instituições
organizadas com base na hierarquia e disciplina”, pertencentes aos Estados,
Distrito Federal e aos Territórios. Incumbindo ao Congresso Nacional, com a sanção
do Presidente da República, dispor sobre (art. 48, III) a fixação e modificação
do efetivo das Forças Armadas.
Adiante no folhear deste caderno de leis, o
constituinte robustece este entendimento expressando consistir em questão
de iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, §1°, I, II, f) as
leis que “fixem ou modifiquem o efetivo das Forças Armadas” e a disposição
sobre “militares das Forças Armadas,
seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade,
remuneração, reforma e transferência para a reserva”.
Competindo privativamente ao Presidente da
República (art. 84, XIII), o exercício do comando supremo das Forças Armadas,
assim como a nomeação dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica,
além de exercer a promoção de seus oficiais-generais e sua nomeação para os
cargos privativos.
Não obstante, o constituinte reservou um capítulo
para estas forças, denominando-o como ‘Das Forças Armadas’, como meio de
demonstrar a essencialidade destas instituições para a organização e manutenção
desta forma de estado.
Dispondo em seu art. 142 a definição destas
forças ao designá-las como forças:
[...] constituídas pela Marinha, pelo Exército e
pela Aeronáutica, são instituições
nacionais permanentes e regulares, organizadas
com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do
Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos
poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da
ordem. (Grifos da autora).
Sabendo
que (§1°) caberá à lei complementar estabelecer “as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo
e no emprego” destas instituições, sendo que seus membros denominar-se-ão militares, cujos quais responderão por
seus crimes frente à justiça especial denominada Justiça Militar (arts. 122, 123 e 124).
Consciente da essencialidade da segurança
pública, o constituinte originário lhe empregou um capítulo próprio em seu
caderno de leis (Capítulo III, definindo-se Da Segurança Pública), onde o art.
144 define a segurança pública como de dever
estatal e direito e responsabilidade
de todos (órgãos públicos, privados e cidadãos), sendo que seu exercício
visa à preservação da ordem pública e
a incolumidade das pessoas e do
patrimônio, e é exercido através da polícia federal, da polícia rodoviária
federal, da polícia ferroviária federal, das polícias civis, das polícias
militares e dos corpos de bombeiros militares (art. 144, I, II, III, IV e V).
Por sua vez, encontrar-se-á a definição de ordem
pública no Decreto n° 88.777/1983, o qual traz a aprovação do regulamento para
as polícias militares e corpos de bombeiros militares (R-200), embasando em seu
art. 2°, item 21 e 25 a definição de ordem pública e de perturbação a ordem
pública, ipsis litteris:
21) Ordem
Pública -.Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da
Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do
interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica,
fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que
conduza ao bem comum.
Enquanto que a perturbação da ordem se expressa
por meio de:
25) Perturbação
da Ordem - Abrange todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de
calamidade pública que, por sua natureza, origem, amplitude e potencial possam
vir a comprometer, na esfera estadual, o exercício dos poderes constituídos, o
cumprimento das leis e a manutenção da ordem pública, ameaçando a população e
propriedades públicas e privadas.
Para facilitar o
entendimento normativo é salutar o estudo dos termos acima referidos por meio
do aspecto doutrinário, instante em que Silva (apud DEZORDI, 2006, p. 27) define a ordem pública como “a
situação e o estado de legalidade normal, em que as autoridades exercem suas
precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento
ou protesto. Não se confunde com a ordem jurídica, embora seja uma consequência
desta e tenha sua existência formal justamente dela derivada”.
Ademais Dezordi (2006, p. 27), em concordância com
Lazzarini afirma que a ordem pública é composta por uma tríade compreendida
pela segurança, a tranquilidade e a salubridade pública, os quais o autor
define utilizando-se dos conceitos de Lazzarini, in verbis:
Segurança Pública: É o estado
antidelitual, que resulta da observância dos preceitos tutelados pelos códigos
penais comuns e pela lei de contravenções penais, com ações de polícia
repressiva ou preventiva típicas, afastando-se, assim, por meio de organizações
próprias, de todo o perigo, ou de todo o mal que possa afetar a ordem pública
em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade das pessoas,
limitando as liberdades individuais, estabelecendo que a liberdade de cada
pessoa, mesmo em fazer aquilo que a lei não lhe veda, não pode ir além da
liberdade assegurada aos demais, ofendendo-a. (Lazzarini, apud DEZORDI, 2006,
P. 27).
Tranqüilidade Pública: Exprime o estado
de ânimo tranqüilo, sossegado, sem preocupações nem incômodos, que traz às
pessoas uma serenidade, ou uma paz de espírito. A tranqüilidade pública, assim,
revela a quietude, a ordem, o silêncio, a normalidade das coisas, que, como se
faz lógico, não transmitem nem provocam sobressaltos, preocupações ou
aborrecimentos, em razão dos quais se possa perturbar o sossego alheio. A
tranqüilidade, sem dúvida alguma, constitui direito inerente a toda pessoa, em
virtude da qual está autorizada a impor que lhe respeitem o bem-estar, ou a
comodidade do seu viver. (Lazzarini, apud DEZORDI, 2006, P. 27).
Salubridade Pública: Referindo-se às
condições sanitárias de ordem pública, ou coletiva, a expressão salubridade
pública designa também o estado de sanidade e de higiene de um lugar, em razão
do qual se mostram propícias às condições de vida de seus habitantes.
(Lazzarini, apud DEZORDI, 2006, P. 27).
Deste
modo, a polícia, órgão público intrínseco à ideia de Estado, devido ao seu
trabalho de exercer vigilância para que se mantenha a ordem pública e desta
forma, poder assegurar o bem-estar coletivo, atua oferecendo garantia ao
exercício dos direitos individuais e coletivos das pessoas.
Conforme
o §5° do art. 144 da CF, a Polícia Militar, incumbe o policiamento ostensivo e
a preservação da ordem pública. O policiamento ostensivo conforme o Decreto n° 88.777/1983, art. 2°, item 27
expressa, a “ação policial exclusiva das Policias Militares em cujo emprego o
homem ou a fração de tropa engajados sejam identificados de relance, quer pela
farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a manutenção da ordem pública”.
A Constituição do Estado de Santa Catarina define
em seu art. 31 que compreendem militares estaduais os integrantes dos quadros
efetivos da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar e ainda reproduz o caput do art. 144 em seu art. 105.
E inova ao trazer no art. 107 sua definição e
atribuições, destacando-a como órgão permanente, que constitui força auxiliar e
reserva do Exército, organizada com base na hierarquia e disciplina, sendo
subordinada ao Governo do Estado.
Tendo por atribuições, além de outras legalmente
constituídas, a cooperação com os demais órgãos de defesa civil (II), a atuação
preventiva como força de dissuasão e repressiva como força de restauração da
ordem pública (III), e ainda, atuar no exercício de polícia ostensiva relacionada
com (I):
a)
a preservação da ordem e da segurança pública; b) o radiopatrulhamento
terrestre, aéreo, lacustre e fluvial; c) o patrulhamento rodoviário; d) a
guarda e a fiscalização das florestas e dos mananciais; e) a guarda e a
fiscalização do trânsito urbano; f) a polícia judiciária militar, nos termos de
lei federal; g) a proteção do meio ambiente; e h) a garantia do exercício do
poder de polícia dos órgãos e entidades públicas, especialmente da área
fazendária, sanitária, de proteção ambiental, de uso e ocupação do solo e de
patrimônio cultural;
No que tange à segurança pública, o Coronel
Edivar[1]
(2010, s/p) a interliga a palavra proximidade,
pois para o ilustre estudioso a polícia deve estar próxima do bandido, e perto
dos locais onde o infrator costuma ou pretende agir, como meio de estar à
frente de suas ações e possibilitar o desenvolvimento da ação preventiva. Mas,
para que isto ocorra, é necessário saber quem é o criminoso, através de sua
identificação e do conhecimento antecipado de suas estratégias.
Pois, conforme o Coronel Edivar (2010, s/p) “a
segurança pública é muito mais que uma sensação é o resultado de ações bem planejadas, avaliadas e
principalmente, do envolvimento direto
daqueles em função de Comando, Chefia ou Direção, no território que lhe
compete”, este planejamento inicia-se através da identificação dos crimes
(tipos delitivos) que mais ocorrem.
Este plano de ações deve ser elaborado pelos Comandantes,
Chefes e Diretores e cabe à sociedade cobrar e fiscalizar os resultados
provenientes deste plano de ações, fazendo com que o superior hierárquico da
polícia se mobilize em prol da sociedade, conhecendo sua circunscrição e as
necessidades provenientes de sua região de trabalho, de modo a procurar
suprimi-las através de ações operacionais.
Para o Coronel Edivar (2010, s/p), “não há
resultado positivo sem dedicação, trabalho, estudo, pesquisa e, ir à luta”, por
isto todo o cidadão deve exigir do Chefe de Comando competência e resultados, posto que na concepção do estudioso “os
policiais a priori, são funcionários
públicos e como tal, alguns tem vocação e outros... nem tanto” e será apenas
através dos vocacionados que será possível construir uma sociedade com níveis
toleráveis de criminalidade, afinal em suas palavras, “a segurança pública é
também, resultado da correta aplicação dos recursos, da eficiência das pessoas
e a eficácia das ações por elas realizadas”.
A título de exemplo das ocorrências policiais,
tem-se o delito de roubo, o qual compreende um delito temido posto que o mesmo
“é planejado, tem invasão de domicílio, agressões ou grave ameaça, deixa
sequelas e traumas psicológicos nas vítimas”, conforme a definição apresentada
pelo ilustre Coronel Edivar (2010, s/p).
Além de conter em si, três formas de violência, “a violência física que ocorre através de
agressões e ameaças, a perda dos bens
materiais, muitas vezes indispensáveis para o exercício da profissão, do
trabalho ou lembranças raras de família e o
trauma psicológico como define o Coronel Edivar (2014, s/p).
Consciente deste sofrimento é que o estudioso
criou o programa Pós-Crime, o qual
visa identificar os agentes delitivos, fazendo “o levantamento de informes,
coleta de dados e compilação de informações, retiradas de cada uma das
ocorrências atendidas”, efetuando um cruzamento de dados pretendentes a
identificar os autores e as suas práticas, por meio de estudos do modo de agir
de cada delituoso, por meio de um trabalho diferenciado, efetuando um
mapeamento da incidência e de informações dos crimes, contribuindo para o
melhoramento e eficácia do policiamento ostensivo.
Na prática a vítima aciona o telefone de
emergência da PM (190) e transmite todas as informações ao atendente, que comunica
a ocorrência a viatura disponível, a qual se desloca até o local do crime para
solucionar, dentro do possível, a ocorrência, efetuando os procedimentos
disponíveis para cada caso. Após o contato com a vítima, a viatura efetua
buscas por suspeitos e da continuidade as suas ações operacionais.
No entanto, no desenrolar destas ocorrências, ou
seja, no calor dos fatos, pode vir a ocorrer excessos, seja por parte das
vítimas, a qual será autuada pelo cometimento do delito de desacato, seja por parte do policial que incorrerá em abuso de poder e de autoridade o que enseja na propositura de uma ação
investigacional visando à punição do infrator.
Conforme sabido sempre que os policiais incorrem
em excessos em suas ocorrências, os mesmos defendem-se alegando que suas
possíveis vítimas incorreram em desacato
contra eles, dando justificativa para o seu agir diferenciado (truculento) para
com estes indivíduos. No entanto, nada justifica uma ação desmedida e excessiva
por parte da polícia, a qual deve pautar seu agir no estrito limite da
legalidade.
Em razão da linha tênue que liga a alegação do
delito de desacato para a configuração do crime de abuso de poder e de
autoridade, este estudo realizará uma análise minuciosa em cada um destes tipos
penais, iniciando-se pelo crime de desacato (art. 331 do CP), de maneira a
clarificar sua aplicação prática, robustecendo cada entendimento por meio de
decisões jurisprudenciais, conforme se verá no próximo item.
3.
DA
ALEGAÇÃO DO DELITO DE DESACATO
O
delito de desacato expresso no art. 331 se configura por meio do ato de
“desacatar funcionário público no exercício da função ou em função dela”, o
direito visa a tutelar o prestígio e o respeito pelos funcionários públicos.
Conforme
Gonçalves (2012, p. 753) o verbo desacatar expressa o desrespeito, o
desprestígio e a ofensa, além de admitir “qualquer meio de execução, como
palavras, gestos, vias de fato ou qualquer outro meio que evidencie a intenção
de ofender funcionário”. Segundo Hungria (apud
BITENCOURT, 2013, P. 215) a ofensa proveniente do delito de desacato compreende:
[...]
qualquer palavra ou ato que redunde em vexame, humilhação,
desprestígio ou irreverência ao funcionário. É a grosseria, falta de
acatamento, podendo consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas,
vias de fato, agressão física, ameaças, gestos obscenos, gritos agudos etc.
De
acordo com Bitencourt (2013, p. 215) este delito expressa “menosprezo ao
funcionário público e, por extensão, à própria função pública por ele
exercida”, não se confundindo com o vocábulo grosseiro, cujo qual se restringe “à falta de educação ou de nível
cultural, quando desacompanhado do fim especial de ultrajar”.
No
entanto, caso o ato ofensivo objetive evitar o cumprimento de um ato funcional,
o delito será de resistência. O delito de desacato se configura em duas
circunstâncias, quais sejam, “a) quando a ofensa for
feita contra funcionário que está no exercício de suas funções, ou seja, que
está trabalhando (dentro ou fora da repartição); b) quando for
feita contra funcionário que está de folga, desde que a ofensa se refira às
suas funções”.
A
configuração delitiva independe de o agente público ter se sentido ofendido ou
não, pois o que o legislador pretendeu tutelar foi o prestígio e a dignidade do
exercício do cargo, desta forma mesmo se o funcionário alegar não ter se
sentido ofendido, mas ficar demonstrado que a conduta era objetivamente
ofensiva, o crime se consuma.
O
desacato precisa ser efetuado na presença do funcionário, caso contrário
configurara o delito de injúria qualificada (art. 140, concomitante com o art.
141, II do CP), como destaca Gonçalves (2012, p. 753). Conforme Capez (2012, p.
1110) trata-se de um crime comum, que qualquer pessoa pode cometer.
Ademais,
para Gonçalves (2012, p. 753) “O crime de desacato existe mesmo que o fato não
seja presenciado por outras pessoas, porque a publicidade da ofensa não é
requisito do crime. Basta, portanto, que o funcionário esteja presente”. O
sujeito passivo desta modalidade delitiva é o Estado e, de maneira secundária,
o funcionário ofendido, desta forma, sendo “o sujeito passivo direto e
principal o Estado, a ofensa perpetrada ao mesmo tempo contra mais de um
funcionário tipifica um só crime de desacato, e não concurso formal”.
O
delito se consuma no instante da ofensa. A ação é pública incondicionada, e de
competência do Juizado Especial Criminal, em razão da pena máxima cominada ser
máxima de dois anos.
Figura 1. Classificação do delito de desacato.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: parte especial.
(Coord.) LENZA, Pedro., 2012, p. 755.
Salienta-se que, inexistindo o ânimo de
desprestigiar a função pública o delito será inexistente, como demonstra os
julgados utilizados por Capez (2012, p. 1111) para ilustrar a hipótese:
Desacato. Delito não caracterizado.
Ofensas a escrevente de serventia. Qualidade de funcionário público. Mero desabafo do acusado contra seu
procedimento. Ausência, pois, de dolo específico. Absolvição decretada.
Declaração de voto. Inteligência do art. 331 do CP” (TACrimSP, RT 576/382).
Desacato. Agente que, ao ser preso por suposta prática de ilícito penal, profere
expressões injuriosas aos agentes da autoridade. Ausência do elemento
subjetivo. Delito não configurado (TJMG, Ap. Crim. 1.0000.00.333509-8/000, Rel.
Des. Márcia Milanez, j. 16-9-2003).
Desacato. Art. 331 do Código Penal.
Sentença condenatória. Inconformidade defensiva. Não se caracteriza o delito de desacato o mero desabafo do réu,
especialmente quando não demonstrada a intenção de atingir a honra ou o decoro
da atividade do funcionário. Absolvição é medida que se impõe. Deram
provimento à apelação (TJRS, RCrim 71000992123, Turma Recursal Criminal, Turmas
Recursais, Rel. Des. Alberto Delgado Neto, j. 4-12-2006).
Portanto, de acordo com Capez (2012, p. 1111) o
elemento subjetivo é o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de desacatar
o funcionário público.
Ademais, o dolo deve abranger o conhecimento pelo
agente, da qualidade de funcionário público, bem como, de que o mesmo
encontra-se em exercício da função ou que a ofensa é proferida em razão dela,
pois caso o agente incida em erro deverá responder por outra qualificação
legal, como a injúria, a calúnia, a difamação etc., mas não se configurará o
desacato.
A doutrina exige o fim especial de ofender ou
desprestigiar a função exercida pelo funcionário público. Diante disto, até
mesmo um advogado pode incorrer nesta prática delitiva, é o que expressa o
julgado do TRF da 4ª Região:
APELAÇÃO CRIMINAL. DESACATO. ADVOGADO. IMUNIDADE. EXERCÍCIO
DA PROFISSÃO. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. VALOR DA MULTA. 1. Demonstrada conduta
que ofendeu servidores, ou equiparados, no exercício da função pública, sem que
restasse demonstrado qualquer excesso na atuação dos mesmos. Coesa prova
testemunhal, corroborada pelas imagens das câmeras de segurança, demonstrou a
ocorrência do
desacato. 2. A imunidade
concedida ao advogado no § 2º do art. 7º da Lei 8.906/94 não abrange a prática
do crime de desacato, e o direito constitucional à liberdade de expressão não é
absoluto, na medida em que comporta limitações com o objetivo de proteger
outros bens jurídicos relevantes. 3. A pena de multa deve ser fixada com
observância ao critério trifásico de cálculo da pena, sendo o valor de cada
dia-multa fixado conforme as condições do réu. (TRF da 4ª Região. ACR- Apelação
Criminal. Relator Sebastião Ogê Muniz. Processo n° 5002994-68.2014.7212. D. E.
29/10/2015). (Grifos da autora).
Delito consumado através de gestos (rasgar atas de
audiência):
APELAÇÃO CRIMINAL. DESACATO. RASGAR ATAS DE AUDIÊNCIA. CONCURSO
MATERIAL. VALOR DA PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA.
1. Rasgar atas de audiência configura crime de desacato.
2. Desacato cometido contra duas autoridades diferentes em lapso temporal de 02 meses configura concurso material e não crime continuado.
3. O valor da prestação pecuniária deve ser fixado conforme as condições do réu. (TRF da 4ª Região. ACR- Apelação Criminal. Processo n° 5003326-41.2014.404.7113. Relatora Cláudia Cristina Cristofani. D. E. 16/09/2015). (Grifos da autora).
1. Rasgar atas de audiência configura crime de desacato.
2. Desacato cometido contra duas autoridades diferentes em lapso temporal de 02 meses configura concurso material e não crime continuado.
3. O valor da prestação pecuniária deve ser fixado conforme as condições do réu. (TRF da 4ª Região. ACR- Apelação Criminal. Processo n° 5003326-41.2014.404.7113. Relatora Cláudia Cristina Cristofani. D. E. 16/09/2015). (Grifos da autora).
Desacato contra policiais militares ipsis litteris:
DESOBEDIÊNCIA. FISCALIZAÇÃO POLICIAL. RECUSA DO ACUSADO A SE SUBMETER À REVISTA PESSOAL. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO COMPROVADOS. DESACATO. DOLO COMPROVADO. FINALIDADE DE HUMILHAR A DIGNIDADE E O PRESTÍGIO DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA. DOSIMETRIA. PENA-BASE. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PARA VALORAR NEGATIVAMENTE A PERSONALIDADE DO RÉU.
1. A resistência do réu à revista pessoal foi reconhecida como verdadeira em seu depoimento. Sendo a ordem legítima e pertinente, o seu descumprimento voluntário caracteriza o crime de desobediência.
2. O cotejo dos autos demonstra ter havido, efetivamente, ofensa do funcionário público, com a finalidade de humilhar a dignidade e o prestígio da atividade administrativa. 3. Ainda que as palavras tenham sido dirigidas (também) a outros policiais, resta mantida a configuração do desacato, pois o bem jurídico protegido pela norma (dignidade e prestígio da função administrativa exercida) é igualmente ofendido. 4. Não obstante tenha o réu se exaltado no dia da abordagem, não há mais elementos que permitam ao juízo concluir ter ele personalidade a ser valorada negativamente, mesmo porque não há registros de condenações anteriores do réu pelo mesmo delito ou similar. (TRF da 4ª Região. ACR- Apelação Criminal. Relator Ricardo Rachid de Oliveira. Processo n° 5001325-33.2011.404.7002. D. E. 25/02/2015). (Grifos da autora).
Porém, há uma linha tênue que liga a alegação do
delito de desacato para a configuração do crime de abuso de poder e de
autoridade, conforme será demonstrado no próximo item.
4.
CONFIGURAÇÃO
DO ABUSO DE PODER E DE AUTORIDADE PELO POLICIAL MILITAR
Acerca do assunto destaca Bitencourt (2013, p. 220)
que os estudiosos do direito encontram certa dificuldade em aceitar “os
fundamentos políticos, sociológicos e jurídicos da justificativa arbitrária e proponente, e da
receptividade passiva com que a doutrina e a jurisprudência têm contemplado, ao
longo do tempo, a configuração das hipóteses corriqueiras do crime de desacato”. Ao ver do autor esta
submissa aceitação aparenta ser mais:
[...] uma flagrante negação de cidadania a
proteção falaciosa do desprestígio, idoneidade e probidade da Administração
Pública, atributos que deveriam ser demonstrados e justificados por seus atos e
pelos resultados que oferece a coletividade, ao contrário de, numa postura
arrogante e despótica, calá-la e impedi-la de exercitar a saudável crítica
democrática, exigindo o atendimento de suas sempre prometidas e nunca atendidas
expectativas funcionais. Resistimos, certamente, às tradicionais prisões em
flagrante, que normalmente ocorrem em “choques com a polícia” e, eventualmente,
em recintos do Poder Judiciário.
O Estado é composto por cidadãos livres aos quais é
dado o direito de defender sua liberdade, dignidade e prerrogativas que este
mesmo Estado lhes assegura através de seu sistema legal, podendo opor-se
inclusive à prepotência e inadimplência estatal, afinal, resguarda a doutrina o
direito de o cidadão “opor-se a ato abusivo, arbitrário, negligente ou
despótico”, sendo este direito intrínseco à cidadania
e dela apenas podendo ser excluído através e pelos meios previstos em lei,
e por isto qualquer coerção que vá para o sentido contrário estaria ofendendo
diretamente a dignidade da cidadania e do próprio cidadão.
Nada obstante, o Estatuto dos Militares (Lei n°
6.880, de 09 de dezembro de 1980), assegura em seu art. 28, que o “o sentimento do dever, o pundonor militar
e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas,
conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos seguintes
preceitos de ética militar” para em seguida expressar em seu inciso III o
respeito pela dignidade da pessoa humana, preceito este que teve fundamental
importância neste estatuto, tanto que o Estatuto dos Policiais Militares do
Estado de Santa Catarina (Lei n° 6.218, de 10 de fevereiro de 1983) copiou-o em
sua íntegra em seu artigo 29.
Cabe ao leitor notar
que ambos os estatutos são anteriores à Constituição de 1988, porém, não se
encontram desta dissociados, posto que a mesma adentrou em solo pátrio
estabelecendo a dignidade da pessoa humana como seu fundamento (art. 1, III).
Não se quer com isto
defender “o desrespeito à estrutura público-administrativa, e tampouco a
subversão à ordem”, se sugere apenas mais cautela ao analisar as alegações
relacionadas ao tipo penal desacato,
levando em consideração as circunstâncias elementares dos fatos.
É de conhecimento geral
que o delito de desacato se configura em maior percentagem na área policial e
judicial, justamente nos âmbitos em que o indivíduo se encontra “mais
fragilizado, emocionalmente perturbado, contrafeito com incidentes eventuais,
mas surpreendentes, que alteram sua rotina repentinamente etc.”
Cabe o reconhecimento
de que a proteção jurídica circunda o desprestígio e o decoro da função
pública, porém, adverte Noronha (apud
BITENCOURT, 2013, p. 221) que “convém, entretanto, ponderar que ele não há de
ser um elfenim[2], com sensibilidade
à flor da pele que, à menor contrariedade oposta, se sinta ofendido. Tal é
próprio das criaturas que, sem exata noção de suas funções, se empolgam pelo cargo”.
Neste ambiente ocorre
mais que o interesse da função pública, mas a falácia da autoridade, pois no
instante em que o cidadão mais precisa de auxílio, compreensão e atendimento
eficaz ele depara com a “arbitrariedade, despotismo, grosseria, agressões e,
finalmente, na prisão em flagrante”,
conforme o autor (2013, p. 221):
Por vezes o cidadão é levado, propositalmente ou
não, a exaltar-se pelo mau atendimento, pelo descaso, ou mesmo por interesse
escusos na própria “autoridade” o que acaba culminando num verdadeiro conflito
de interesses, com o resultado desfavorável ao mais fraco, qual seja o cidadão
preso, autuado, vilipendiado somente porque a autoridade precisava fazer valer
o seu “arrogante poder” de calar o insatisfeito e ousado cidadão reclamante.
Faz-se oportuno invocar aqui o magistério de Rudolf Von Ihering, que
sentenciava: ‘quando o arbítrio e a ilegalidade se aventuram audaciosamente a
levantar a cabeça, é sempre um sinal de certo de que aqueles que tinham por
missão defender a lei não cumpriram o seu dever’.
Não é raro os casos em
que, na configuração do delito de desacato
existe a provocação da autoridade, pois
o delito geralmente ocorre no âmbito policial, pretendente a encobrir
arbitrariedades, “forçando o pseudodesacato”.
Neste instante quem
procedeu com ofensa a dignidade da função pública foi o funcionário e não o
indefeso cidadão (parte mais frágil desta relação), não cabendo a este
funcionário exigir que a função por ele desrespeitada seja pelo outro
respeitada.
A maioria dos casos
evidenciados pelo judiciário de desacato refere-se a autoridades policiais,
diante disto Bitencourt (2013, p. 222) assegura que:
As polícias
militares são useiras e vezeiras nessa “farsa”, principalmente no policiamento
de rua ou de trânsito, com a agravante de que as testemunhas do flagrante são
outros policiais, ou seja, os mesmos parceiros de “tarefa”, independentemente
de o fato ter acontecido em meio a outras pessoas, lugar populoso ou no
interior de alguma casa noturna. Testemunhos como esses devem ser recebidos
sempre com muita reserva, sendo absolutamente muito insuficientes se não vierem
corroborados com outros meios de provas.
Cabe
destacar as palavras de Manzini (apud
BITENCOURT, 2013, p. 222) quando salienta que:
[...]
os funcionários públicos e os empregados encarregados do serviço público,
devem, realmente, ser respeitados, mas a lei não exige que sejam venerados como
pessoas sagradas e intocáveis, de modo que se tenha como delituosa a simples reprovação
de seus atos, expressa por modo não injurioso.
Diante
deste entendimento a doutrina e a jurisprudência têm sustentado sobre a não
constituição delitiva “a crítica ou censura dura, incisiva e enérgica, a
atuação de órgãos ou agentes públicos”, posto que a crítica prolatada pelo
cidadão, sem o propósito de ofender,
relacionada ao serviço prestado pela Administração Pública, não configura o
delito de desacato, em razão de ser direito do indivíduo a fiscalização e
crítica acerca da qualidade do serviço público prestado, de modo a impedir o
uso da arbitrariedade nas atividades públicas. Conforme se nota na decisão:
PENAL.
DESACATO. ART. 331 DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE NÃO COMPROVADA.
ABSOLVIÇÃO. 1. Pratica o crime do art. 331 do
Código Penal aquele que desacata o funcionário público no exercício da função
ou em razão dela. 2. Caso em que não foi comprovada a prática do desacato, pois a expressão de frase
desafiadora em momento de exaltação não demonstra a intenção específica de
menosprezar o funcionário público em razão das suas funções, necessária para a
configuração do delito. 3. Sentença mantida. (TRF
da 4ª Região. ACR- Apelação Criminal. Relator Sebastião Ogê Muniz. Processo n°
5001406-16.2010.404.7002. D. E. 14/07/2015). (Grifos da autora).
Trata-se de ação que se refere à suposta
ocorrência de uma discussão ocorrida, no dia 23 de abril de 2010,
na Ponte Internacional Tancredo Neves, entre o acusado Juan Gabriel Gea e o
agente de polícia federal Aelson dos Santos Alves[3],
oportunidade em que o primeiro, segundo afirmou o Ministério Público Federal,
desacatou o segundo, dizendo a ele que 'ser homem com uma arma na cinta é
fácil'.
Na busca pela verdade dos fatos, o
relator extraiu da discussão entre ambos que: “A bem da verdade, faltou, a
ambos, bom senso, sendo certa a existência de outros meios para solução da
controvérsia que se estabeleceu na oportunidade do fato narrado na denúncia,
uma vez que o 'bate-boca', normalmente, não surte resultados.”
E continuou: “Assim sendo, não é possível afirmar, com a
certeza exigida para prolação de uma sentença condenatória, se a atuação do
agente de polícia federal Aelson dos Santos Alves foi ou não legítima”.
Ademais, conforme sua decisão:
Embora seja presumida a legitimidade dos atos
praticados pelos servidores públicos, há que ser observado que Aelson dos
Santos Alves, em seu depoimento, disse que o acusado, após apresentar documento
válido, foi autorizado pela funcionária terceirizada a ingressar em território
nacional e que, após, de forma discricionária, optou por lhe barrar o ingresso
no país, ao que parece, motivado pela prévia discussão que se estabeleceu entre
ele e aquela prestadora de serviços. (TRF da 4ª Região. ACR-
Apelação Criminal. Relator Sebastião Ogê Muniz. Processo n°
5001406-16.2010.404.7002. D. E. 14/07/2015). (Grifos da autora).
No entender do Relator Sebastião Ogê Muniz:
Não sendo possível, portanto, verificar a legitimidade da atuação do agente de polícia
federal Aelson dos Santos Alves, não há como ser acolhida a pretensão do
Ministério Público Federal.
O núcleo do tipo do
art. 331 do Código Penal é desacatar, ou seja, realizar
uma conduta objetivamente capaz de menosprezar a função exercida por
determinada pessoa. Em outras palavras, ofende-se o funcionário público
com a intenção de humilhar a dignidade e o prestígio da atividade
administrativa.
Se não bastasse não ser possível verificar a legitimidade da atuação do
agente de polícia federal Aelson dos Santos Alves, há que ser observado que as
palavras do acusado, no sentido de que é fácil ser homem com uma arma na mão, data
venia, não tem o condão de humilhar o servidor apontado como vítima ou
menosprezar a função por ele exercida, a menos que se trate de pessoa
melindrosa, diversa do homo medius.
Por fim, observo que 'a figura do desacato exige dolo, intenção de
ultrajar ou desprestigiar, não se configurando o tipo se houve discussão
motivada pela exaltação mutua de animos', posicionamento, aliás, adotado
pelo Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº
13946/PR (Rel. Ministro CID FLAQUER SCARTEZZINI, QUINTA TURMA, julgado em
24/06/1992, DJ 17/08/1992, p. 12507). (TRF da 4ª Região. ACR-
Apelação Criminal. Relator Sebastião Ogê Muniz. Processo n°
5001406-16.2010.404.7002. D. E. 14/07/2015). (Grifos da autora).
Do confronto entre a narração do réu e a do autor
foi possível extrair que não houve o cometimento do delito alegado,
demonstrando estar correta a sentença ao proferir que “a discussão motivada pela exaltação mútua de ânimos não configura
a prática do tipo do artigo 331 do Código Penal”.
Atenta-se para o fato de que o relator salientou
acerca do modo discricionário como o agente policial federal agiu, indagando-se
da legitimidade da atitude do mesmo, neste sentido, o Coronel Edivar (2012,
s/p) salienta para a necessidade de procurar a justiça sem fazer justiçamento[4],
afinal para ele o que faz de uma pessoa um ser humano é sua capacidade de
“sentir compaixão pelo sofrimento alheio”, pois do contrário a pessoa seria comparável
a uma máquina e por isto seria descartável.
Desta feita, no cotidiano do agente da lei, não
há como os mesmos deixarem de refletir sobre o fato de estar trabalhando
diretamente com seres humanos, e normalmente em sua contenção, o que exalta seu
lado negativo facilitando o desenvolvimento de ocorrências desta espécie, em
que muitas vezes o indivíduo, inconformado, com a multa de trânsito, por
exemplo, se exalta, cabendo ao funcionário manter-se íntegro.
Afinal, a Constituição promulgou aos brasileiros
o regime democrático de direito, e como o ilustre Coronel Edivar (2012, s/p)
destaca, este regime político reflete a liberdade de expressão, dando a
oportunidade de concretizar a justiça, sem que se faça justiçamentos, tratando
de maneira diferente os desiguais (princípio da isonomia).
Em seu relato o Coronel Edivar (2012, s/p) afirma
ser possível que um funcionário público possa, utilizando-se da capacidade e
poder que o estado lhe empresta através do exercício do cargo público, mudar as
situações desfavoráveis e modificar beneficamente o ambiente em que está
inserido, trazendo melhorias para a sociedade. Foi com este entendimento que ele elaborou
diversos planos de ações e programas de melhoria para o cidadão, sob a égide do
juízo de que não há lugar no ambiente policial para policiais truculentos e
arbitrários.
Não é diferente o posicionamento legislativo, tanto
que a Lei n° 4.898 de 1965 que regula o direito de representação e processo de
Responsabilidade Administrativa, Civil e Penal nos casos de abuso de autoridade expressa no art. 3º
e 4º as condutas que configuram o delito de abuso de autoridade, como por
exemplo, qualquer atentado a liberdade de locomoção, ao sigilo da
correspondência, à inviolabilidade do domicílio, à liberdade de consciência e
de crença, à incolumidade física do indivíduo, havendo uma grave omissão no que
tange a proteção da incolumidade psicológica do indivíduo.
O autor do delito de abuso de autoridade se
sujeita a sanções de caráter administrativo, civil e penal.
O art. 5° da lei em comento traz a definição
legal de autoridade, como sendo “quem exerce cargo, emprego ou função pública,
de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração”.
Salienta-se que há uma linha delicada que envolve
as condutas de desacato e de abuso de autoridade, devendo haver uma minuciosa
análise em cada conduta relacionada aos crimes alegados, sob pena de injustiça,
pois o que faz de uma pessoa um ser humano[5],
conforme apregoado pelo Coronel Edivar (2012, s/p) é sua “capacidade de sentir” e como os serviços públicos são prestados por
seres humanos e dirigidos a outros seres humanos é natural que desta relação
emerjam conflitos e destes conflitos possíveis ilegalidades que precisam ser
analisadas caso a caso.
5.
CONCLUSÃO
Este
artigo pretendeu retratar as ocorrências de abuso de autoridade mascaradas em
denúncias de desacato, situações estas que ocorrem principalmente na seara
policial, instante em que se procedeu com uma análise da atividade policial e
passou-se a estudar minuciosamente os tipos penais destas duas modalidades
delitivas.
Deste
estudo foi possível transmitir ao leitor conhecimento suficiente para que o
mesmo possa distinguir as diferenças nas ocorrências destas duas modalidades
criminais e evitar ser enganado por denúncias ‘camufladas’, argumentando este
posicionamento através de estudos de casos práticos extraídos dos tribunais.
De
todo o exposto foi possível concluir que a condição de pessoa humana abre
possibilidades para que ambas as partes incorram em erros e até mesmo em
ilicitudes, cabendo ao operador jurídico saber diferenciar quando se trata de
uma denúncia forjada e quando a denúncia é real, sob pena do cometimento de
injustiças.
REFERÊNCIAS
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Disponível no Blog Edivar Bedin. Disponível em: http://edivarb.blogspot.com.br/2010/08/eleicoes-e-seguranca-publica.html#more. Acesso em 11
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de maio de 2016.
BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal 5: parte
especial. Dos crimes contra a administração pública e dos crimes praticados por
prefeitos. – 7ª ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013.
_____. Como diminuir o crime de roubo. Disponível no Blog Edivar Bedin. Disponível
em: http://edivarb.blogspot.com.br/2010/02/o-crime-de-roubo-tem-solucao-pm-pode.html#more. Acesso em 11
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_____.Pós-Crime – A resposta para o crime de roubo. Disponível no site
Edivar Bedin. Disponível em: http://www.edivar.com.br/?p=338. Acesso em 11
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BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível
em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em 11
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_______. Constituição do Estado
de Santa Catarina, de 05 de outubro de 1989. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70453/CE_SantaCatarina.pdf?sequence=13. Acesso em 11
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______. Decreto Federal nº 88.777,
de 30 de setembro de 1983. Aprova o Regulamento para
Polícias
Militares e Corpos de Bombeiros (R-200). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D88777.htm.
Acesso em 11 de maio de 2016.
_____. Estatuto dos Policiais-Militares do Estado
de Santa Catarina. Lei n° 6.218, de 10 de fevereiro de 1983. Disponível em:
http://www.pm.sc.gov.br/fmanager/pmsc/upload/dsps/ART_927398_2014_07_23_083233_l_6218_198.pdf. Acesso em 13
de maio de 2016.
______. Estatuto dos Militares. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6880.htm. Acesso em 13
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______. Lei n°
4.898, de 09 de dezembro de 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4898.htm. Acesso em 13 de
maio de 2016.
CAPEZ, Fernando Código penal
comentado / Fernando Capez, Stela Prado. – 3. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012.
DEZORDI, Sadiomar Antonio. Competência
da Polícia Militar de Santa Catarina como autoridade policial para efetuar a
lavratura do termo circunstanciado na esfera ambiental. Monografia apresentada para a obtenção de
certificado de graduação em segurança pública pela Universidade do Vale do
Itajaí, 2006.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: parte
especial. (Coord.) LENZA, Pedro. – São Paulo: Saraiva, 2012.
WIKIPÉDIA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Justi%C3%A7amento. Acesso em 04
de agos. de 2016.
Resumo da Autora:
Aline Oliveira Mendes de Medeiros, Advogada,
Graduada em Direito, Pesquisadora na área de Segurança Pública, Direito
Ambiental e Penal. Autora do livro A
promoção dos Direitos Humanos Fundamentais através da Polícia Militar; Autora
do Blog Direito em Estudo. E-mail: linny.mendes@hotmail.com.
OBS: Por decisão do STJ o desacato a autoridade deixou de ser crime.
[1]
Coronel da 4ª Região da
Polícia Militar de Santa Catarina. Homenageado recentemente com a Comenda
Barriga Verde da Polícia Militar, por contribuir para o engrandecimento da
PMSC.
[2] Elfenim: pessoa delicada, mole, franzina ou efeminada.
[3]
Como este processo transitou em julgado e se tornou público, foi utilizado os
nomes dos envolvidos no desenrolar do texto. Julgado do TRF da 4ª Região. ACR- Apelação Criminal.
Relator Sebastião Ogê Muniz. Processo n° 5001406-16.2010.404.7002. D. E.
14/07/2015.
[4] Justiçamento: aplicação de penas ou gravames a alguém,
ou a algum grupo, ao arrepio da lei e do Direito; justiça: aplicação de penas
em conformidade com a lei. (Wikipédia).